União pelas vítimas de hanseníase

Compreendendo a saúde em um sentido mais amplo, estudantes e professores universitários combatem o preconceito contra portadores de hanseníase

por Nathan Santos sex, 10/06/2016 - 21:30
Divulgação Projeto realiza diversas atividades em parceria com o Morhan Divulgação

Por quase 40 anos, brasileiros portadores de hanseníase viveram isolados do restante da sociedade. Uma política oriunda do Governo Federal que criou, em 1923, o isolamento obrigatório das pessoas diagnosticadas com a doença, com o intuito de evitar a propagação de contágios em uma época que não existiam conhecimentos médicos suficientes sobre a enfermidade. Nos chamados hospitais colônias, pacientes viveram por anos e anos, construíram famílias entre eles próprios, criaram pequenas cidades, mas não conseguiram superar os traumas da doença e principalmente o cruel preconceito oriundo de uma sociedade ainda presa na falta de informações acerca do diagnóstico.

Chamados de leprosos, os pacientes eram tratados com desprezo e, ao se depararem com pessoas sadias, temiam ser desrespeitados. Viviam envergonhados e até se sentiam culpados, uma vez que a hanseníase era tida entre muita gente como uma maldição herdada desde a época bíblica. Uma vez diagnosticado, o indivíduo não tinha escolha e era retirado de qualquer maneira do convívio social, deixando para trás seus familiares. Até as mulheres, minutos após o nascimento dos seus filhos, não podiam amamentar as crianças, pois os bebês eram retirados das mães e levados para um local chamado preventório, cuja intenção era evitar que os filhos sadios não se contaminassem com as mães portadoras de hanseníase.

Um dos poucos registros de leprosários no Brasil – Santo Angelo, São Paulo, 1962. Fiocruz/Arquivo

Nas linhas gerais da medicina, a doença é classificada como infecciosa, de evolução crônica, causada pelo Mycobacterium leprae. Segundo definição da Sociedade Brasileira de Dermatologia, “a hanseníase acomete primeiro a pele e os nervos periféricos, e pode atingir também os olhos e os tecidos do interior do nariz. O primeiro e principal sintoma é o aparecimento de manchas de cor parda, ou eritematosas, que são pouco visíveis e com limites imprecisos. Nas áreas afetadas pela hanseníase, o paciente apresenta perda de sensibilidade térmica, perda de pelos e ausência de transpiração. Quando lesiona o nervo da região em que se manifestou a doença, causa dormência e perda de tônus muscular na área”. Quando não há o devido tratamento, os doentes podem perder partes do corpo.

Diante do fim do isolamento compulsório em 1962, das atuais campanhas na mídia e graças ao trabalho médico no tratamento da doença, boa parte da sociedade brasileira entende atualmente que a hanseníase tem cura e deve ser tratada de forma ambulatorial assim que descoberta. Mesmo assim, uma parcela da sociedade insiste em discriminar os portadores da doença e os ex-enfermos. É nesse contexto que um programa de extensão da Universidade de Pernambuco (UPE), iniciado em 2011, atua incansavelmente para preservar o lugar dessas pessoas entre a população. O cuidado com a saúde é apenas um dos pilares do trabalho. O bem estar social, o respeito, a quebra de paradigmas, o incentivo à qualificação e o combate ao preconceito são outros objetivos de professores e alunos que saem dos muros do ensino superior e ingressam nas realidades de pessoas marcadas por um passado cruel, necessitadas de ajuda e de um acompanhamento humano. É quando a prática deixa de ser apenas uma etapa da graduação e ganha o status de “função social”, colocando os universitários na “escola da vida”, onde aprendem que a formação, por si só, não foca apenas no mercado profissional, mas busca também contribuir para as minorias.

“O Programa de Extensão Hanseníase Cuidado e Direito e Saúde surgiu em 2011 para legitimar uma prática que já acontecia na Universidade, que é a inserção de estudantes de enfermagem no Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan). O Morhan luta pelas causas das pessoas com a doença, tem unidades em todo o Brasil e em Pernambuco foi inaugurado na Década de 80. O objetivo maior da relação da extensão com o Movimento é levantar as demandas necessárias que têm haver com a garantia dos direitos das pessoas com a hanseníase”, explica a coordenadora do projeto, a professora Raphaela Delmondes.

Segundo a professora, os estudantes participam de todas as atividades do Morhan, tais como audiências públicas que discutem os direitos dos doentes, integração em frentes de lutas, propagação de educação em saúde em diversos setores e visitas a serviços de saúde. Essas últimas acontecem, principalmente, a partir de denúncias de descaso nos serviços prestados à população, colocando estudantes e integrantes do Movimento em ação para apurar os casos e, havendo a necessidade, denunciar formalmente aos órgãos competentes. Sobretudo, o cotidiano das pessoas que viveram nos hospitais colônias e ainda hoje permanecem nesses locais - porque na época do fim do isolamento não tiveram para onde ir - é um dos casos acompanhados pelo trabalho de extensão que nos alerta para um passado sombrio, mas que ainda está presenta na mente de muita gente.

Saúde no sentido mais amplo

De acordo com Rhaphaela Delmondes, durante as ações, os universitários compreendem que a busca pela saúde está em um patamar que vai muito além do estado físico das pessoas. “Nós compreendemos que quando a gente fala que o programa é de hanseníase, cuidado e direito à saúde, trabalhamos na perspectiva ampliada de cuidado. Entendemos que o direito à saúde é fundamental para o ser humano, abrangendo todas as necessidades sociais possíveis de ser atendidas. Por exemplo, estudar é saúde, bem como ter moradia, bem estar, lazer e o próprio cuidado com a saúde. A gente compreende a saúde de uma forma mais ampla”. explana a docente.

A coordenadora do projeto ainda destaca o papel do ensino superior no sentido da formação acadêmica e da proposta de moldar profissionais com compromissos éticos. “A Universidade procura formar o estudante com pensamentos ético e político. Não buscamos apenas a formação técnica. É assim que encontramos o papel social do ensino superior. Quando o estudante participa de um projeto como o nosso, ele se transforma e transforma o meio em que vive, ao se tornar um profissional mais comprometido em ajudar a sociedade, garantindo os direitos das pessoas que mais precisam”, complementa a professora.

Estudante do sétimo período do curso de enfermagem da UPE, Ana Maria de Araújo (foto à esquerda), de 22 anos, teve no programa a oportunidade de conhecer mais de perto a realidade dos portadores de hanseníase. Durante os dois anos em que participa das atividades do projeto, a jovem assimilou os objetivos das ações e começou a enxergar que compreender a saúde além do estado físico do indivíduo é muito mais importante tanto para o paciente, quanto para o estudante universitário. A jovem revela que, apesar de existirem professores responsáveis por guiar as atividades, não há “hierarquia”, fator que, segundo Ana Maria, facilita a troca de conhecimentos entre todos os envolvidos. “É uma relação de troca. Todo mundo tem algo para ensinar e aprender. Vejo como uma relação horizontal em busca do saber. Tudo isso nos ajuda bastante na formação e principalmente no dia a dia do programa, quando precisamos colocar em prática as coisas que aprendemos”, diz a estudante.

A experiência adquirida no trabalho é exaltada por Geoclebson da Silva Pereira, de 19 anos. No sétimo período do curso de enfermagem, há quase oito meses o universitário começou a vivenciar um projeto de extensão universitária, que pela primeira vez o aproximou do universo prático da graduação. “A partir do grupo comecei a me inteirar da hanseníase. Tudo que aprendo me ajuda a pensar nos debates sociais e me faz ajudar pessoas que, por diversos fatores, desconhecem os direitos que têm. Posso dizer que está sendo uma experiência riquíssima e que vem contribuindo muito para minha formação”, relata Geoclebson.

Coordenadora do programa de extensão da UPE ao lado de Raphaela Delmomdes, a professora Danielle Christine Moura dos Santos reforça a importância da prática, principalmente quando acontece através da troca de conhecimentos. “Na formação dos profissionais, a existência da experiência propicia uma abordagem técnica do que foi aprendido na sala de aula. O estudante consegue articular conhecimentos e a vivência traz para o aluno um olhar que vai além da doença em si. Não posso dizer que um universitário que participa de um projeto de extensão tem uma formação melhor do que aqueles que não participam, mas posso afirmar que a experiência contribui para uma graduação diferente, porque o estudante conhece histórias que ele vai levar para sua prática profissional. Quando esse universitário for atender uma pessoa com hanseníase, por exemplo, ele vai discutir com o paciente, além da doença, como estão algumas situações ligadas à garantia dos direitos das pessoas portadoras”. No vídeo a seguir, a professora Danielle e os estudantes Geoclebson e Ana Maria compartilham depoimentos sobre a vivência do projeto:

 

Parceiro do programa da UPE, Gildo Bernardo da Silva, de 64 anos, é coordenador do Morhan em Pernambuco. Diagnosticado com hanseníase anos atrás e curado graças ao tratamento adequado, seu Gildo conhece de perto a força do cruel preconceito contra as pessoas portadoras da doença. Por isso dedica grande parte do seu tempo em prol das causas e direitos dos indivíduos enfermos egressos dos hospitais colônia, em um trabalho paralelo com a Universidade que vem gerando bons frutos. Pelo menos 300 pessoas já foram beneficiadas pelas atividades do projeto, porém, de acordo com Gildo, a luta ainda está longe de cessar.

“O Morhan, em parceria com este belo projeto da UPE, que envolver tanto as professoras quanto os alunos, ainda luta para minimizar o impacto do preconceito contra as pessoas com hanseníase. Buscamos, ainda, garantir assistência social e o tratamento adequado aos portadores, e não esquecemos de batalhar pelos ex-moradores dos hospitais colônias, para que eles não sofram discriminação e que tenham todos os direitos garantidos”, destaca Gildo. “Além disso, trabalhamos em busca de serviços assistenciais psicológicos e terapêuticos, porque eles são muito importantes para minimizar os traumas mentais deixados nas pessoas que viveram o isolamento ou que ainda temem preconceito. Nosso movimento também é apoiador do serviço de saúde público para o tratamento dos doentes”, complementa o coordenador do Morhan.

E os traumas ainda se fazem presentes na vida de Juliano Vieira de Farias, de 71 anos. Ex-paciente do hospital colônia de Pernambuco, mesmo local onde funciona hoje o Hospital da Mirueira, na cidade de Paulista, Região Metropolitana do Recife, o senhor convive com as sequelas físicas da hanseníase e as marcas mentais causadas pela sociedade que separava e condenava os doentes. Passou 31 anos da sua vida no que ele chama de “depósito de lixo humano”, perdeu convívio familiar e, afirmando ter se acostumado a “viver sozinho”, nunca conseguiu casar e ter filhos. Um alento para tanto sofrimento, segundo ele, é o trabalho desenvolvido pelos estudantes da UPE e integrantes do Morhan.

“Fui arrastado de dentro de casa aos 14 anos de idade e me jogaram no hospital da Mirueira. Morava no bairro da Várzea, no Recife, com meus pais e mais sete irmãos. Me deixaram longe deles e passei a viver em um lugar que classifico como depósito de lixo humano. Quando saí e passei a morar fora do hospital aqui na Mirueira, cheguei até a ser apedrejado por pessoas que não tinham preconceito. Se esse projeto dos estudantes tivesse começado esse trabalho em 1950, eu não teria passado por tanta coisa que passei na minha vida até hoje. É um trabalho que me alegra muito, apesar de tanto sofrimento, porque ajuda a tirar da cabeça da sociedade um preconceito que nunca deveria existir”, conta Juliano Vieira.

 

Além de seu Juliano, outras pacientes que viveram o cruel isolamento no antigo leprosário revelam lembranças que até hoje alimentam o choro de tristeza. Alguns permanecem morando no Hospital da Mirueira por não ter para onde ir. Confira no vídeo a seguir:

De acordo com o Morhan, no ano passado, o Brasil registrou mais de 30 mil casos de hanseníase. Dessa quantidade, cerca de 2 mil diagnósticos aconteceram em Pernambuco. Sobre os moradores do Hospital da Mirueira que viveram o isolamento compulsório, a Secretaria de Saúde do Estado, responsável pela unidade hospitalar, esclarece que vilas existentes dentro da área da unidade são voltadas para os antigos pacientes de hanseníase que foram internados na instituição e, devido à exclusão existente na época, terminaram se isolando da sociedade. Interessados nos atendimentos do projeto em parceria com o Movimento podem acessar a página do Morhan ou ligar para o telefone 0800.026.2001.  

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