Do fast-food à Netflix: preso denuncia regalias na cadeia
Ex-interno do Complexo Penitenciário de Gericinó, no Rio de Janeiro, fala sobre pagamentos regulares ao diretor da unidade prisional e catálogo com serviços pagos aos agentes penitenciários
Um ex-preso do Complexo Penitenciário de Gericinó, em Bangu, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, detalhou como funciona o sistema de regalias dentro das prisões. Em um sistema de recompensas, os encarcerados com maior poder aquisitivo têm acesso aos serviços especiais, que podem ir do acesso às drogas e aparelhos de celular, comuns em cadeiras de todo o Brasil, à oferta de frutos do mar e fast food. As informações foram reveladas em entrevista à TV Globo, por um ex-preso não identificado, por questões de segurança.
O homem, que passou quatro anos atrás das grades, disse que dentro das cadeias do Rio a proximidade entre os presos e os agentes do estado é grande – e manter essa boa relação custa caro. Em seu depoimento, ele deixou claro que as encomendas são feitas pelos próprios agentes, que possuem precificação tabelada.
Ele contou que o acesso a um celular no presídio é muito fácil, desde que o preso aceite o alto investimento para comprar um aparelho. O valor é compensado pelo “serviço” clandestino, que oferece até chamadas de vídeo.
“Tem tabela de preços em relação aos aparelhos e não em relação a quem vai comprar. Independente do preso que vai comprar, seja um matador perigoso, um traficante, se um valor é para um, é para todos. Agora tem telefone, depende muito da unidade. Tem unidade, que hoje eu converso, que é dois mil (reais) o telefone”, explicou o homem.
E acrescentou: "Se a visita não aparecesse, não tinha problema nenhum. Por exemplo, vou falar com meu filho, faço uma chamada de vídeo na hora que eu quiser, o tempo que eu quiser. A minha vó, ou seja quem for".
Fazer fotos e vídeos também está liberado. Tem registro dos presidiários fora e dentro da cela, da comida e até do banho de sol.
Em conversa por mensagem exibida pelo RJ2, um preso mostra uma foto de um roteador e comemora ter conseguido Wi-Fi. "Agora tenho Netflix e Wi-Fi na cadeia, meu amor!", comemora o preso. Esconder o aparelho durante uma fiscalização também envolve dinheiro.
"Antes de eles serem transferidos, eu ligava para ver se eles queriam vir. Eu explicava: 'Vou te pagar mil reais por mês, independente se for preciso ou não. Tu vai receber mil reais por mês. Se você não quiser, eu deixo você falar no telefone por horas, estipula o horário que você precisa falar, eu deixo você falar, mas no dia que eu precisar, eu vou precisar que você guarde."
O ex-presidiário disse que tudo era combinado com o "chefe de disciplina ou chefe de segurança", a quem era informado o nome dos outros detentos que "guardariam" o aparelho.
Drogas e bebidas
"Por exemplo, dois litros de energético é quinhentos reais. Uma batata, um frango, alguma coisa assim, é sessenta reais. Isso era coisa que usava constantemente porque eu não comia aquela comida. Eu comia batata, frango...", segue explicando.
No final de semana, o homem disse que fazia um "rateio" com outros "comissionados" da cadeia. Segundo ele, cada um colocava quinhentos reais para comprar "picanha, camarão"e "lanche no MC Donald's".
'Cardápio' pago no presídio
Além dos altos valores, os agentes podem cobrar diferente caso conheçam as condições de um preso específico. Quanto “melhor de vida”, mais alto o preso pagará. A picanha, o camarão ou um lanche do MC Donald’s custam R$ 500 cada. Já um energético gira em torno de R$ 200. A entrada de drogas também é planejada. A maconha, por exemplo, é embrulhada em papel carbono para driblar o raio-x.
"Nessa questão das condições básicas de saúde, é onde abre os olhos de alguns que veem que dentro daquela unidade tem preso que tem uma condição financeira boa, e ali ele se aproveita que a alimentação vem ruim e te oferece um lanche do MC Donald's por cem, duzentos reais." Também é possível fazer encomendas, como picanha, camarão, whisky, Red Bull.
Comunicação entre cadeias
A comunicação entre presos de diferentes cadeias também acontece.
Em outra mensagem exibida pela reportagem, um preso comenta a chegada do ex-secretário de Administração Penitenciária Raphael Montenegro ao Presídio de Bangu 8.
No diálogo, um dos presos afirma que a entrada de Montenegro no sistema pode piorar a situação no complexo penitenciário porque "a direção está escaldada", ou seja, com medo de ser pega na escuta e de o diretor ser exonerado.
Dinheiro na mão do diretor
Também no relato, o ex-preso afirmou que toda sexta-feira é preciso ter uma "certa quantia" de dinheiro na mão do diretor da unidade.
"Existe uma regra que toda sexta-feira tem que seguir uma certa quantia na mão do diretor. O diretor deixa a gente solto, entre aspas, para fazer o que a gente bem entende. (...) Na verdade, tendo dinheiro você consegue muita coisa, praticamente tudo", pontua o ex-interno.
Em nota, a Secretaria de Administração Penitenciária informou que depois de receber as denúncias vai instaurar uma sindicância para esclarecer os fatos. E acrescentou que a nova administração repudia qualquer irregularidade nas unidades prisionais.