Precariedade afeta saúde dos profissionais da rede materna
Equipes que atuam nos hospitais de Pernambuco são tão vítimas quanto os pacientes que procuram atendimento. Sistema sobrecarrega o profissional, que não está imune ao desenvolvimento de doenças causadas pelas dificuldades da profissão, além de não ter capacidade humana para atender as demandas
Sem leitos para todos os pacientes e com superlotação, profissionais que atuam na Maternidade Barão de Lucena tem que trabalhar "do jeito que dá". Imagem Cortesia.
"Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. Do mesmo modo não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva." Esse é um trecho do juramento que os médicos fazem ao se formarem. No entanto, todo dia é uma luta para que esses profissionais consigam cumprir o juramento e, assim, auxiliar quem precisa de ajuda. Afinal, como dar conta de um hospital com leitos insuficientes, falta de medicamentos, infraestrutura inadequada e uma escala de profissionais defasada - sobrecarregando quem ainda insiste em cumprir o que foi prometido?
Essa é a realidade dos profissionais que atendem a rede materna pública de Pernambuco, que vive um caos diário com as unidades superlotadas e a falta da capacidade humana para atender toda a demanda. De acordo com os relatos de alguns médicos obstetras, existem maternidades no Estado com uma ocupação que chega a 400% do que poderia suportar. “Você vira para o lado e ‘pergunta meu Deus, o que é que está acontecendo? Quem é que eu vou poder priorizar aqui em detrimento das outras pessoas?.’ Isso mexe com o emocional do profissional”, relata Agostinho Machado, membro da câmara técnica de ginecologia e obstetrícia do Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe).
Essa realidade faz com que esse profissional chegue ao final do plantão com o desgaste físico e mental. Machado diz que já viu médicos passarem no concurso público, começarem a atuar na área e, com pouco tempo de exercício, pedem para sair porque não aguentam a realidade do sistema. “O que muitas vezes deixa o profissional triste é que entra e sai secretário e não há um avanço. Isso causa uma aflição e o profissional adoece. Lidar com a saúde é uma responsabilidade muito grande. A obstetrícia (por exemplo) está lhe dando com duas vidas e tem uma responsabilidade dobrada. Está muito difícil atualmente”, aponta Agostinho Machado.
A Maternidade Bandeira Filho deveria atender apenas os casos de Alto Risco, mas por conta do colapso que o sistema materno vive, o cotidiano dos profissionais e pacientes é o que mostra a foto. Imagem Cortesia
Em 2017, o Conselho Federal de Medicina (CFM) entregou mais de 15 mil páginas impressas com os relatórios de fiscalização de quase 3 mil ambulatórios e postos de saúde distribuídos por todos os Estados e Distrito Federal do Brasil. As visitas foram realizadas entre janeiro de 2015 e junho de 2017; uma série de irregularidades foi encontrada. Com a realidade "em mãos", o órgão afirma que o Sistema Único de Saúde (SUS) está “abandonado”. No Manifesto, os profissionais destacaram as dificuldades que prejudicam o sistema ao longo dos anos.
A falta de leitos é considerada um dos principais “gargalos” do SUS. De acordo com o CFM, de 2010 a 2015, o Brasil perdeu 23,6 mil unidades destinados aos pacientes que precisam ficar por mais de 24 horas internados. O efeito colateral apontado pelo órgão é a sobrecarga nos serviços de urgência e emergência. No Brasil, psiquiatria, pediatria cirúrgica, cirurgia geral e obstetrícia são as especialidades que mais sofreram o impacto do fechamento dos leitos de internação. O Conselho Federal de Medicina aponta que, em números absolutos, os estados das regiões Sudeste e Nordeste foram os que mais sofreram redução no período.
À assessoria do CFM, Mauro Ribeiro, então vice-presidente do órgão, disse que “Todos os dias nós, médicos, testemunhamos a morte de pessoas que poderiam ser salvas pela disponibilidade de um leito de UTI. Para os governos, quando um paciente morre, trata-se apenas de mais um número. Para a família, no entanto, é uma tragédia”, pontua.
Cláudia Beatriz, presidente do Sindicato dos Médicos de Pernambuco (SIMEPE), reforça que maioria das maternidades do Estado estão com as escalas de plantões defasadas. “A Barros Lima, por exemplo, era para estar trabalhando, a cada plantão de 12 horas, com 5 obstetras, 3 neonatologistas e 2 anestesistas. A Bandeira Filho e a Arnaldo Marques deveriam atuar com 4 obstetras, 3 neonatologistas e 2 anestesistas. Atualmente, nenhuma dessas 3 tem equipes completas os sete dias da semana”, diz Beatriz.
Um levantamento do Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (CREMEPE), obtido em primeira mão pelo LeiaJá, mostra a situação das maternidades de Alto Risco do Estado. Todas elas estão localizadas no Recife.
Beatriz, que também atua como obstetra na Maternidade Barros Lima, localizada em Casa Amarela, Zona Norte do Recife, lembra que no dia 11 de março, a unidade contava com 2 obstetras, 2 neonatologistas e 2 anestesistas. Ou seja, só contando os obstetras, foram menos 3 profissionais para dar conta de todas as parturientes que procuraram a maternidade para terem o seu bebê.
“A capacidade dos profissionais reduzida faz com que nós não consigamos dar conta, devidamente, de tudo. São esses hiatos que fazem com que tenham bebês morrendo na barriga da mãe. Não é porque o médico deixou de fazer uma cesariana, não. Eu já vi colegas chorando por perderem vidas de pacientes por conta das dificuldades que enfrentam no sistema público de saúde”, lamenta Cláudia.
Como ninguém está livre de doenças, esses profissionais médicos sobrecarregados estão desenvolvendo cada vez mais a Síndrome de Burnout. De acordo com o Ministério da Saúde, a principal causa da doença, conhecida também como "Síndrome do Esgotamento Profissional", é justamente o excesso de trabalho. Esta síndrome é comum em profissionais que atuam diariamente sob pressão e com responsabilidades constantes, como médicos, enfermeiros, professores, policiais, jornalistas, dentre outros.
Ainda não há um levantamento do órgão federal que demonstre a imensidade desse problema. Imagem Pixabay.
Estes profissionais médicos estão padecendo de estigmas e expectativas sociais. Por um lado é adorado e endeusado quando suas intervenções são imediatamente bem sucedidas. Por outro lado, são cobrados a nunca errar e sempre fazer viver, ou não deixar morrer ninguém. No entanto, mesmo sendo um interventor, esse profissional não tem o dom da vida.
"Quem está na linha de frente é quem geralmente recebe essa cobrança e carga emocional. Algumas vezes, já me deparei com essa indignação e eu digo ao paciente que estou do lado dele. O que eu quero para ele é o mesmo o que ele quer para a esposa dele. Mas, muitas vezes, o desfecho desfavorável é porque faltou um leito, uma acomodação adequada”, exclama o doutor Agostinho Machado. Ele complementa que está faltando as pessoas irem aos órgãos públicos cobrarem para que os problemas sejam minimizados.
“Os médicos, dentro desse cenário, são tão vítimas quanto eles (pacientes). Quando eu saio de casa e vou para o plantão, saio com a sensação de que vou querer ajudar alguém e oferecer o meu melhor. Mas há um limite para isso. Se não tem estrutura, não tem equipe, não tem acomodação que te permite fazer isso, você acaba tendo o risco de acontecerem os desfechos desfavoráveis que machucam demais. Nós cobramos, mas não temos as respostas à altura”, pontua o membro da câmara técnica de ginecologia e obstetrícia do Cremepe.
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