Posseiros ameaçados acusam construtora de grilagem

Famílias que vivem há décadas no Engenho Suassuna, em Jaboatão dos Guararapes, assistem suas casas serem derrubadas por imobiliária

seg, 01/04/2019 - 12:28

A moradora está inquieta, anda de um lado para o outro dentro dos cômodos inacabados ainda com respingos de cimento pelas paredes de sua casa. Com as mãos muito trêmulas, ela segura uma xícara de café com alguma dificuldade. O olhar atento e o semblante de tristeza revela a angústia que Josefa Joaquina de Lima, 75, sente naqueles minutos de apreensão. Ela mora há mais de cinquenta anos nas terras do antigo Engenho Suassuna, dentro da Usina Jaboatão, desativada desde 1996 e atualmente com as ruínas em estado completo de abandono. Dona Zefa, como é chamada pelos mais próximos, é constantemente ameaçada de despejo e ao perceber a aproximação do carro da reportagem, associou o veículo como pertencente “aos homens” que alegam serem os novos donos das terras habitadas por ela e mais um grupo de pouco mais de 50 famílias sitiantes.

Zefa custou a acreditar que, na verdade, a aproximação da equipe de jornalismo seria para ouvi-la sobre os motivos pelos quais ela e seus vizinhos, companheiros de décadas, estariam sendo obrigados a deixarem suas casas ou vê-las sendo demolidas pelos temidos tratores, do dia para a noite, de maneira arbitrária. No terraço de casa, ela se senta na cadeira de balanço e aos poucos o tom de voz estremecido vai desaparecendo, mas não completamente. O nervosismo não é exclusivo da moradora, o sentimento também é partilhado, principalmente, pelos ex-empregados da usina e seus familiares. Eles apontam uma série de ilegalidades, violência psicológica e física contra os posseiros. Mas, apesar da descrença nas autoridades públicas, eles ainda resistem na contramão da especulação imobiliária em Jaboatão dos Guararapes.

Há vinte e três anos, os antigos donos da Usina Jaboatão, também conhecida como Indústria Açucareira Antônio Martins de Albuquerque, que fica localizada no bairro de Muribequinha, decretaram falência e fecharam as portas. Josefa lembra bem das dificuldades que passou principalmente após o ano de 1996 ao lado de seu marido Octacílio José, já falecido, que era tratorista da usina. Ela conta que a empresa fechou e seu esposo não recebeu nenhuma verba trabalhista pelos anos trabalhados.

A situação deles é também a de centenas de ex-empregados que não tiveram créditos trabalhistas e rescisórios quitados, mesmo após acionarem a Justiça. As poucas exceções foram alguns funcionários que tiveram seus débitos pagos por meio de adjudicação de glebas de terra do engenho, tornando-se então os proprietários desses terrenos. Quem não recebeu nada, optou por permanecer nas terras do Engenho Suassuna, onde já residia com a família e passou a trabalhar na agricultura, plantando alimentos como macaxeira, laranja e verduras.

Mãe de seis filhos, dos quais dois morreram, Josefa continuou nas terras do engenho após o marido falecer. Nascida em Limoeiro do Norte, no Ceará, ela relembra que conheceu Jaboatão dos Guararapes porque vinha sempre à usina visitar um tio que prestava serviços para os latifundiários. Aos doze anos, em uma dessas viagens, conheceu o marido e se apaixonou. Não demorou para que Zefa e Octacílio se casassem. Eles vieram morar na Fazenda Suassuna porque ele trabalhava no local. É tanto tempo morando naquelas terras que Zefa já perdeu as contas exatas, mas ao observar alguma documentações e a carteira de trabalho, já muito surrada e cheia de remendos, de seu esposo, ela calcula que está naquela terra há mais de cinquenta anos.

Ela não morou sempre na casa atual, já de alvenaria. Precisou assistir três moradias feitas de taipa, doadas pela administração da usina na época, caírem por falta de estrutura. “Eram feitas de barro e não aguentavam o desgaste. Nessa última casa que estou morando agora, não foi a usina que me deu como nas outras vezes. Eles me disseram que estavam falindo e não tinha condições de construir mais uma casa para a gente. Eu vendi um terreno em Marcos Freire, na época, e consegui levantar esse meu cantinho de tijolo, mas nem consegui terminar direito, pode ir olhar”, diz Zefa, que busca em várias caixas bem guardadas a documentação para comprovar que seu marido trabalhou para a usina e mostrar que ela não é uma invasora de terra.

Josefa reside sozinha atualmente na Gleba 5, termo utilizado para fins do processo judicial. Para ela, esse novo termo pouco importa. Aquele pedaço de terra representa tudo que restou de uma vida de muito trabalho nas lavouras de cana-de-açúcar ao lado do marido e nas cozinhas, quando trabalhou como doméstica no Recife. Ela relembra os momentos de abordagem para convencê-la a sair do seu pedaço de terra, a sua moradia. “Esses novos donos vieram negociar comigo perguntando se eu tinha vontade de sair da minha casa e se não aceitava um terreno fora daqui. Eu falei logo que não porque a minha vida é aqui, sempre foi e só saio é morta ou se o trator passar por cima do meu corpo”, complementa Zefa lamentando que esteja passando por isso após tantos anos de dedicação ao engenho. 

Para ela, a relação afetiva com a sua morada está acima até das relações familiares. “Todas essas pessoas que trabalhavam na usina moravam aqui, sabe? Eu gosto demais de morar nessa minha terra. Quando minha filha me leva para passar algumas semanas em outros bairros, eu fico doidinha e já quero voltar. Passo o dia lendo a palavra do Senhor perto da árvore e tudo aqui é uma paz. Muitas pessoas recebem ameaça aqui e eu ouço muito isso, só os vejo passando. Escuto os meus vizinhos dizendo que são os homens”, conta.

Segundo o pesquisador Gaston Bachelard, no livro ‘A Poética do Espaço’ a casa é nosso canto no mundo. “É um sucedâneo do útero, primeira morada, cuja memória talvez persista em nós, onde estávamos tão seguros e nos sentíamos tão a gosto (...)”. Para o estudioso, a moradia vai além do geométrico, é um espaço afetivo sempre envolto de emoções.

 

A advogada Mariana Vidal, representante da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e uma das profissionais à frente do caso, detalha que a área do Engenho Suassuna estava destinada a ser desapropriada para fins de reforma agrária, juntamente com mais três engenhos e o caso era acompanhado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e pelo Ministério Público Federal. “Após alguns anos, o Incra considerou que o imóvel como um todo tinha sofrido um processo de urbanização, ocupação e já tinha perdido o caráter de imóvel rural, embora algumas áreas ainda conservem essas características, como é o caso de parte dessa comunidade que estamos tratando’, explica Vidal.

 

Ela pontua que em meados de 2015 a CPT começou a acompanhar o caso porque os moradores da região passaram a receber visitas de homens armados, intimidando os moradores e sitiantes para que saíssem das terras. Casas e plantações foram destruídas por esses supostos proprietários. “A gente começou a atuar perante o MPF porque existia um processo que tratava sobre a área, já que antes a terra iria ser desapropriada e assim já se tinha um inquérito civil público a respeito dessa comunidade. Mas, como o Incra não iria mais desapropriar as terras, o MPF deixa de atuar porque o caso perde a atribuição federal e segue para o MPPE, a nível estadual”, resume a advogada.

Assim como parte da terra do Engenho Suassuna foi dividida em glebas para a partilha das terras entre os supostos novos proprietários, para fins didáticos, a reportagem também vai utilizar os termos do processo judicial. As duas áreas em questão são a Gleba 5 e a Gleba 1. (Não há informações sobre o tamanho exato dessas duas áreas, mas estima-se em mais de 60 hectares de terra). A primeira ainda tem caráter de zona rural, com características pouco alteradas ao longo dos anos, sendo composta por vários hectares de terras com sítios e agricultores que usam da terra para subsidiar a alimentação familiar e para comercializar essas os alimentos colhidos. Nessas terras moram cerca de cinquenta famílias há mais de cinquenta anos, em sua maioria, são ex-empregados da Usina Jaboatão e seus familiares.

 

Já a Gleba 1 sofreu muitas alterações físicas ao longo dos anos após o fechamento da usina. O local ganhou um aspecto de urbanização e tem até vias pavimentadas. Em sua maioria, as mais de 150 famílias que estão nessas terras mais populosas e menos rurais ocuparam as terras em meados de 1995 para reivindicar a reforma agrária na região, já improdutiva. Essas famílias também começaram a plantar roçados e apesar de características mais urbanas, também possuem plantações e curral com animais para as devidas necessidades de sobrevivência.

 

Mariana explica que na divisão das terras, a Gleba 5 foi destinada para o ex-funcionário José Batista de Arruda Filho e a Gleba 1 foi adjudicada para José Gonzaga David. Os dois venderam os dois terrenos para a empresa Destak Serviços e Empreendimentos Ltda. – EPP, pertencente aos sócios Auvandir Oliveira Pereira e Marília Gabriella Pedrosa de Sousa, em 2016. Na documentação consta que o imóvel foi adquirido para a posterior implantação de um empreendimento para moradia. Seria construído, exatamente na área da Gleba 5, o ‘Loteamento Village Jaboatão’.

“Os proprietários adquiriram as terras, mas a comunidade da Gleba 5 está lá há muitas décadas. Apesar de o local ter sido decretado pela Prefeitura como área de expansão urbana, o imóvel é ocupado e possui as características rurais. Essas família denunciam que a própria Prefeitura de Jaboatão dos Guararapes e os novos donos da terra agem em conjunto para que eles saiam do local que vivem há décadas, sem ao menos um acordo coerente”, aponta Mariana Vidal.

 

O casal de aposentados Maria Severina, 71, e José da Hora Santiago, 77, construíram uma família no quintal do Engenho Suassuna, na Rua Tanque de Mel, que fica na Gleba 5. Eles se conhecem desde a juventude e após Zé da Hora ser efetivado para prestar serviços na Usina Jaboatão, passaram a morar na região. No início dos anos 2000 as indagações de quem era o verdadeiro dono da terra começaram. Visitas surpresas, ameaças nem um pouco veladas, arma de fogo para intimidar e a constante presença de homens alegando que se os sitiantes não saíssem teriam a única residência derrubada, mesmo estando ali por décadas e terem direito a exercer a posse do imóvel.

 

Essas ameaças e a derrubada de mais de dez casas se fortaleceram em 2015, pouco antes da terra ser passada para a Destak. Maria Severina tem medo de acontecer uma tragédia a qualquer momento, mas é firme e sabe dos anos que levaram para ter uma casa própria de alvenaria. Ao lado de seu marido, morou por muito tempo nos barracões do Engenho Suassuna, sem ao menos energia elétrica. Ela percorre os cômodos da casa e a relação afetiva com o local é vibrante. É o seu único espaço e da sua família. E nem lá conseguem ter paz.

“Somos posseiros e não invasores. A minha família já trabalhava aqui há muito tempo quando eu vim morar. O antigo usineiro, o doutor Guilherme era muito bom com a gente, mas os filhos dele não prestam. Não aguento mais ver todos os meus familiares sofrendo todos esses anos, eles nos ameaçam com maquinário. Nenhuma autoridade faz nada, a gente já registrou tanto boletim de ocorrência. É cada um que venha e diga que é o dono da terra, todo dia é uma fofoca”, lamenta a idosa, aos prantos com medo de colocar o pé para fora de casa e assisti-la sendo demolida.

O seu esposo, José da Hora, começou a trabalhar na Usina Jaboatão em 1957 porque a mãe arrumou o serviço com um conhecido. Foram anos ao lado da foice cortando cana para o engenho moer. “Também trabalhei como tratorista conservando a estrada da usina por todos os engenhos e carregando material para os pedreiros. O dinheiro era muito pouco e eu sempre fazia oias carregando vagão de açúcar para entregar a rede ferroviária”, relembra.

 

 

Só em até fevereiro de 1964 foi efetivado e teve a primeira carteira de trabalho assinada. “Eles viram que eu tinha disposição para trabalhar e me chamaram para formalizar meu documento. Lembro que pagava até o sindicato do açúcar”, conta Zé da Hora. Mas, em 1996, quando a empresa fechou as portas, ele foi mais um que não recebeu nenhum direito trabalhista. “Apareceu gente de todo canto para ganhar terras, mas os trabalhadores antigos não ganharam foi nada. E ainda querem tomar a minha casa. Tomaram já parte do meu sítio”.

José da Hora e Maria Severina passaram por muitos momento difíceis e choram ao lembrar das dificuldades para construir a primeira casa. “Passei muita fome. Largava de meia-noite da usina e não ia dormir. Pegava a foice e ia lá pra cima cortar mais cana porque tinha muito débito no barracão, que era onde eu morava na época. Quase não dormia. Minha esposa ia levar um rango para mim e me ajudava no serviço. Depois saia de lá às 10h da manhã e ia para a usina”, diz.

Uma vida inteira dedicada a um empreendimento que apesar da situação atual, ainda lhe traz boas lembranças do tempo do engenho e dos antigos patrões. A dedicação de Zé da Hora e Maria Severina agora corre risco de sumir. “Hoje eu não durmo pensando nisso e preciso tomar remédio controlado para conseguir me deitar. Fico pensando em ser jogado na rua sem ter onde morar até porque minha aposentadoria é pouca. O espaço que me restou planto inhame, abacate, um pé de planta e uma fruta. A enxada para mim serve como terapia também para entreter a minha mente”, avalia Zé. Apesar da lamentação, ele e a família ainda acreditam na vitória, que significa continuar na sua casa. “Daqui eu não saio”, conclui.

 

 

As pressões desses proprietários consistiam em derrubada de casas, ameaças e coação para que as famílias não mais plantassem na área que era tradicionalmente voltada para o uso coletivo da comunidade. Eles alegam uma série de violações dos Direitos Humanos e irregularidades cometidas contra os moradores mais antigos, principalmente. De acordo com uma série de boletins de ocorrências registrados na Polícia Civil, dentre as pessoas que passaram a intimidar e a violentar as famílias são citadas o sargento da Polícia Militar Ronaldo Severiano de Melo, José Gonzaga David, Amaury César Rezende Filho, Clenivaldo dos Santos Ribeiro e o comissário da Polícia Civil Eduardo Ferrer de Santana.

 

Os moradores afirmam que esses homens citados falavam que embora a casa fosse deles, a terra não era e iriam sair de qualquer jeito. Com medo após amigos perderem suas casas, essas famílias da Gleba 5, principal terreno em questão pelas características menos modificadas e onde teoricamente seria construído o loteamento, se uniram aos moradores da Gleba 1 e fundaram a Associação dos Moradores Sitiantes Agricultores da Fazenda Suassuna.

De acordo com a CPT, o único processo a respeito das terras do Engenho Suassuna que está na Justiça é movido pelos supostos novos proprietários justamente contra o presidente da associação, o réu Fábio Ferreira da Silva, morador da Gleba 1. Ele chegou para ocupar a área em 2007 e em 2015 ajudou na fundação da associação por ser uma das vozes de liderança na área. “Fui ameaçado de morte e tentaram tirar a minha vida de todo jeito porque eu lutava pelo direito desses ex-empregados. Eles têm o direito a essa terra e não estamos pedindo favor a ninguém”, comenta.

 

Ele denuncia que até policiais não param de pressionar a comunidade cometendo atos contra a legislação, com abuso de poder. Após uma série de ataques que sofreu, Fábio foi inserido no Programa Estadual de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PEPDDH), ligado à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos de Pernambuco. “Já foram 19 casas derrubadas e até tentamos prestar queixas da polícia. Algumas conseguimos, mas outras só eram possíveis na presença de advogados porque eles tinham conhecimento das autoridades e simplesmente não registravam a ocorrência”, diz Fábio, que atualmente não pode mais entrar na Gleba 5 por causa do processo movido pela Destak.

 

O grupo imobiliário ajuizou uma ação de ‘interdito proibitório’ contra Fábio, alegando que ele liderava um grupo de pessoas residentes na Gleba 1 (sem determinar quem seriam tais pessoas) que se deslocavam até a Gleba 5 com o intuito de obstaculizar as obras de infraestrutura para implantação de um loteamento que a empresa estaria realizando no local.

O que a Destak diz para a Justiça é que as pessoas da Gleba 1 entram na Gleba 5 para construir casas e atrapalham o processo de construção do loteamento. Mas não existe obra nenhuma na região. Os moradores só observam os tratores quando chegam para demolir as casas. Não há movimentação por lá e já até filmamos isso para mostrar ao juiz”, explica a advogada Mariana. Ela diz ainda que a Destak nega, de qualquer forma, que existem moradores há décadas na Gleba 5, sendo esses pessoas vindas para atrapalhar a evolução do empreendimento.

Apesar da atuação da CPT em provar a existência de mais de 50 famílias de ex-empregados da usina, a Destak ganhou na Justiça uma liminar para manter Fábio e 'qualquer pessoa' do grupo dele longe da Gleba 5. “Sendo que isso foi muito arbitrário, já que não se especificou quem seriam essas pessoas”, avalia Mariana.

Em trecho retirado do Relatório de Monitoramento Presencial do PEPDDH, o órgão da gestão estadual afirma que já acompanha o caso.

"O Governo do Estado de Pernambuco acompanha o conflito fundiário do Engenho Suassuna por meio do Programa Estadual de Proteção a Defensores de Direitos Humanos (PEPDDH/PE), da Secretaria Executiva de Direitos Humanos de Pernambuco, desde 2016, em decorrência de violações do direito à moradia, à terra, ao trabalho e à alimentação, além da ocorrência de dano, ameaças e intimidações às cerca de 160 famílias residentes na área, e especificamente direcionadas também ao Sr. Fábio Ferreira da Silva, liderança comunitária local.

Instituído pela Lei Estadual no 14.912, de 27 de Dezembro de 2012, e nos moldes do Decreto regulamentar no 6.044, de 12 de Fevereiro de 2007, o PEPDDH/PE visa a proteger pessoas, grupos e entidades que tenham seus direitos ameaçados em decorrência de sua atuação na promoção ou na proteção dos direitos humanos no Estado. O caso em tela, especificamente, versa sobre a contraposição, de um lado, do direito à terra e à moradia de dezenas de famílias, garantidos constitucionalmente e por tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário, e, de outro, interesses particulares, que, segundo relatos dos moradores, diversos Boletins de Ocorrência e Inquéritos Policiais instaurados, impõem-se por meio de ameaças, intimidações e derrubadas de casas sem ordem judicial. A área, na década de 1990, foi decretada apta à desapropriação para fins de reforma agrária, sendo posteriormente considerada área de expansão urbana. A despeito disso, diversas famílias ainda vivem da agricultura familiar na localidade, sendo que algumas delas foram forçadas a paralisar as atividades de plantio devido às ameaças referidas".

 

 

No dia 16 de agosto de 2018 por volta das 10h da manhã, o aposentado Antônio Manoel do Nascimento, 64, teve parte da vida destruída em alguns segundos. De acordo com os autos do processo, uma equipe de representantes da sociedade empresária, dentre eles Auvandir Oliveira Pereira, o advogado Francisco Assis de Lima, e Eduardo Ferrer de Santana, estiveram no sítio onde Antônio morava há mais de 23 (vinte e três) anos. Com um trator, empregados da Destak demoliram a casa de Antônio Manoel, com todos os móveis e eletrodomésticos dentro. No dia, as pessoas da família passaram muito mal e precisaram ser socorridas pelo SAMU, que compareceu ao local.

 

“Os prepostos da parte Autora procederam à destruição da casa sob pretexto de estarem cumprindo a ordem de interdito proibitório. Note-se, contudo, que um mandado de interdito proibitório não confere poderes para demolição de casas e destruição de plantações. É um mandado com finalidade meramente preventiva, e, no caso específico, destinava-se ao Réu (Fábio Ferreira) e outros que supostamente “estivessem sendo liderados por ele”) não impedisse a continuidade das “obras que estão sendo realizadas” pela Autora”, diz trecho do processo que corre na Justiça.

Antônio Manoel é ex-empregado da antiga Usina Jaboatão e também permaneceu nas terras após a falência. Ele estava há 23 anos exercendo posse sobre a terra onde residia e trabalhava, tempo suficiente para configuração da usucapião.

Na legislação brasileira, a propriedade é quando o imóvel tem registro em cartório e o indivíduo é dono de uma coisa, mediante comprovação. "O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha", trecho do art. 1.228 do Código Civil.

Já a posse significa ter, reter, ocupar, estar, desfrutar de alguma coisa e não necessariamente ter um registro ou documento comprobatório. De acordo com o art. 1.228 do Código Civil: "o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha".

“Quando as pessoas vão se defender, lutar pela casa, eles alegam que estão atrapalhando o seguimento das obras, que nem existem. Notificam como invasão e alegam que a pessoa não morava lá. Eles não podem cumprir essas decisões de derrubar as casas das pessoas que nem estão no processo. Já que o único nome posto no documento é o de Fábio, citado como um líder dos moradores. Eles simulam essa situação, invisibilizam essa comunidade que está ali há décadas para parecer que são invasores”, resume Mariana Vidal sobre a problemática nas Glebas 1 e 5.

A pesquisa 'A produção capitalista da habitação: o caso do mercado imobiliário do município de Jaboatão dos Guararapes (PE) baseado nas novas reconfigurações produtivas da RMR, realizada por Mariana Freire, do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano (MDU/UFPE), avalia os espaços urbanos e as transformações em mercadorias, na esfera da comercialização. 

"Já é possível observar o início deste processo no município de Jaboatão dos Guararapes, onde o grande investimento do capital tem sido a comercialização de habitações (não de interesse social, mas voltada para a reprodução capitalista), em virtude, principalmente, do crescimento do Complexo Industrial Portuário de Suape (CIPS) e a proximidade do município com relação a este empreendimento, levando aqueles que possuem poder aquisitivo a instalar-se em áreas próximas ao complexo", revela estudo. 

Moradores da região, inclusive, alegam que carros com a marca de 'Suape' foram vistos trafegando pelo engenhos junto aos policiais, nos dias em que casas foram derrubadas. "A gente não sabe exatamente o que esses veículos estavam fazendo lá, se estão planejando algo grande por lá e se há interesse econômico", complementa Mariana. 

Ainda de acordo com a pesquisa, a estudiosa detalha que esse é o modus operandi mais comum. "É dessa forma que vem acontecendo o fenômeno do aquecimento imobiliário em Jaboatão dos Guararapes, onde o espaço torna-se mercadoria à medida que ocorre o movimento da transformação do uso em troca e os agentes imobiliários transformam o espaço em mercadoria ao comprar e vender terrenos, dando início também a um processo de especulação imobiliária", trecho retirado do estudo.

 

Vídeo filmado pelos próprios moradores:

 

 

 

A agricultora Márcia Maria de Lima, 47, uma das filhas de Josefa, também teve uma casa destruída quando morava na Gleba 5, nas proximidades da residência de sua mãe, que é enferma. Ela também é uma voz forte na região e tentou organizar os moradores por anos, seja com movimentos pelo direito à terra ou em pequenas reuniões. Mas, o tempo deixou Márcia descrente na resolução do problema. Ela assistiu sua casa ser destruída por policiais e precisou sair do território rural por medo de perder a vida.

 

Ela hoje mora em uma ocupação urbana dentro do terreno da Fazenda Suassuna, mas fora do perímetro da Gleba mais valiosa aos olhos dos empreendedores imobiliários. “Hoje eu sou sem teto porque eu não posso ficar perto da minha mãe por causa dessas ameaças desses latifundiários e grileiros. Eu tinha essa casa de taipa na beira do rio, já tinha metade de alvenaria. Aí o sargento Ronaldo e Amaury vieram e derrubaram tudo. Entrei em luta corporal com eles, prestei queixa na polícia. Mas, espero uma providência até hoje”, lamenta. O grileiro é a pessoa que se apodera ou procura se apossar de terras alheias, mediante falsas escrituras de propriedade.

Márcia alega que não há acordo com os donos da terra. “Não querem indenizar os moradores e o diálogo é na base da ameaça de despejo”, diz. Como agricultora ela foi muito afetada porque distante da área rural não há onde plantar. Agora precisa da renda do Bolsa Família para sustentar a família e não passar fome. “Fico muito preocupada com a minha mãe lá em cima. Tenho medo de ter um despejo e eles derrubarem a casa dela, sabe? Ela é muito atacada dos nervos”.

Mariana destaca ainda que um dos pontos que a defesa ainda está apurando, afinal a investigação do caso não chegou ao fim, é como esses dois trabalhadores, o Gonzaga e Batista, tão citados pela comunidade teriam ganho todos esses hectares de terra apenas por uma causa trabalhista. “O que os moradores nos contam é que eles trabalharam por poucos anos como seguranças e conseguiram um pedaço de terra de em média 60 hectares. Isso causa muito estranhamento e é provável que possam ser laranjas. Ganharam as terras e depois repassaram. Mas são poucas respostas sobre quem ganhou terra e quem não ganhou. Não descartamos fraudes, mas essas perguntas seguem sem respostas”.

O termos "laranja" designa a pessoa que intermedia transações financeiras fraudulentas, emprestando seu nome, documentos ou conta bancária para ocultar a identidade de quem a contrata.

 

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Os moradores da Gleba 5 contam que só ouvem ameaças de despejo e quando são questionados com acordo para deixarem as suas casas, esses não correspondem com a realidade dos sitiantes que vivem da terra. Mas, a advogada da CPT também esclarece que judicialmente a Destak diz que não há ninguém morando nas terras e caso seja encontrado alguém por lá, seria um invasor trazido por Fábio da Gleba 1. “São duas conversas, uma oficial e outra não. Quando esses empresários procuram os moradores, eles dizem que vão doar um pedaço de terra de 250m² na Gleba 1, mas tem morador com sítio medindo 2 hectares de terra, não é justo”, informa Mariana.

 

A Prefeitura de Jaboatão dos Guararapes pouco tem atuado no sentido de mediar a situação e chegar a um comum acordo entre as partes. “A gestão se coloca ao lado da imobiliária porque eles têm interesse na construção desse loteamento e até nos negaram documentação”, complementa. Para o Direito, esses moradores estão exercendo posse e isso é protegido pela lei. Todos esse anos já poderia configurar o usucapião.

“Não é só a propriedade que importa. A prefeitura começou a pressionar o pessoal da Gleba 5 para aceitar o acordo feito por Auvandir e diziam que se eles não aceitassem, não teriam chance”, denuncia Mariana.

 

Atualmente, em março de 2019, o processo movido pela Destak está parado, sendo a última movimentação as de alegações finais, esperando apenas um pronunciamento do juiz. Ele pode dar uma sentença ou atender o pedido dos advogados da CPT, que é promover a citação dos outros moradores da Gleba 5, pelo menos um representante de cada família, já que só Fábio é réu e esses sitiantes estão invisíveis e seguem não sendo ouvidos.

O Ministério Público de Pernambuco já foi acionado inúmeras vezes pelos moradores, mas o órgão, na visão dos posseiros, não dá importância ao caso e tende a facilitar para os novos proprietários. Mariana aponta que a CPT não sabe o nível de informação que o órgão tem do assunto, mas o contato é constante para narrar as ilegalidades.

Procurado para se posicionar e esclarecer como tem avaliado as questões do Engenho Suassuna, o MPPE informou que a Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo de Jaboatão dos Guararapes está acompanhando a situação dos moradores da Fazenda Suassuna.

“Na última semana, o MPPE se reuniu com representantes da Prefeitura de Jaboatão, que se comprometeram a apresentar relatório das tratativas adotadas pelo poder público a fim de mediar a relação entre os posseiros e as pessoas que compraram parte do terreno. No momento, o MPPE aguarda o envio do documento por parte da Prefeitura para designar nova reunião com todos os envolvidos”, diz a nota.

A reportagem também procurou a Polícia Civil para pedir explicações sobre o comissário Eduardo Ferrer e suas condutas com os moradores do engenho. Uma série de boletins de ocorrência foram registrados contra o agente. Também por meio de nota, a PCPE esclarece que em momento algum, houve negativa de registro de boletim de ocorrência, mesmo os moradores alegando isso.

“A Polícia Civil de Pernambuco, por meio da 6ª Delegacia Seccional de Jaboatão dos Guararapes, esclarece que, em momento algum, houve negativa de registro de Boletim de Ocorrência. Tanto é que a própria demanda da imprensa informa que quatro boletins foram registrados na Delegacia de Jaboatão Centro. Com base nesses registros, o policial civil também citado na demanda foi indiciado por abuso de autoridade. Cópia deste procedimento policial foi encaminhada para a Corregedoria da SDS para as medidas administrativas cabíveis. As matérias que tratam da posse de terra, do usucapião e de sua eventual reintegração já estão sendo tratadas na esfera cível, não sendo competência da polícia judiciária solucionar estes conflitos”.

De acordo com a assessoria da Secretaria de Defesa Social (SDS), foi aberto um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) para investigar a atuação do policial no caso relatado. “O processo tramita sob sigilo, como é de praxe em procedimentos correicionais, sendo garantido o direito à ampla defesa e ao contraditório. A conclusão do PAD será publicada no Boletim Geral da SDS”.

Por telefone, a assessoria de comunicação da Prefeitura de Jaboatão dos Guararapes disse que não iria comentar o caso porque o terreno é privado e a demanda compete apenas aos posseiros e donos. A reportagem também procurou a empresa Destak, mas o advogado comunicou que os donos do imóvel só falariam em juízo (em depoimento à Justiça).

 

 

 

De acordo com os registros históricos da biblioteca do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Usina Jaboatão foi fundada pelos irmãos Diogo Soares e Fernão Soares, no ano de 1573. O nome do engenho foi dado por causa do Riacho Suassuna, que cortava a região.

 

O antigo Engenho Suassuna encontra-se hoje em ruínas e sua casa-grande, datada de 1790, foi saqueada. É a mais antiga casa de engenho do município que ainda está de pé. Atualmente, famílias de ex-empregados da usina ocupam o local.

Em 1929, pertencia ao coronel Antônio Martins de Albuquerque. Tinha capacidade para processar 400 toneladas de cana e fabricar 4.000 litros de álcool em 22 horas.

O engenho possuía 13 propriedades agrícolas e pequenos sítios, uma via férrea de 40 quilômetros com diversas locomotivas e vagões. Foi posteriormente vendida a Antônio Martins de Albuquerque e atualmente pertence aos seus herdeiros.

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