Dois artigos, Narcisismo em tempos sombrios – A cultura da razão cínica e Corrupção e capital cívico, ajudam analisar e refletir sobre a atualidade brasileira já que as ciências sociais não têm resposta definitiva que explique a origem da corrupção seja como fenômeno inerente a determinados povos, produto cultural ou uma complexa combinação de vários fatores.
O primeiro foi publicado no Jornal do Brasil, edição do dia 21 de maio de 1988, de autoria do brilhante psicanalista pernambucano, Jurandir Freire Costa.
O segundo foi publicado no Estado de São Paulo, edição de 31 de julho do ano em curso, de autoria do competente economista André Lara Rezende.
Comecemos pelo segundo. O autor toma emprestados resultados dos recentes trabalhos feitos pelo Professor Dan Ariely (Universidade de Duke, EUA). A conclusão é que queremos ser honesto, mas a propensão para a desonestidade está em todos nós. De outra parte, a decisão não obedece a um cálculo racional tanto que “Há quem escolha não levar vantagem mesmo na ausência de punição para o comportamento incorreto. Referências culturais contam”.
Para ilustrar, ele conta o que chama de “história curiosa e triste para nós brasileiros” segundo a qual houve uma época em que diplomatas estrangeiros tinham isenção de pagamento de multas de estacionamento na cidade de Nova York. Segundo o artigo “um estudo mostrou que, ao longo de cinco anos, os diplomatas suecos e canadenses não tiveram multas, os alemães uma multa per capita, os italianos 15, os brasileiros 30”. Algo faz a diferença: o valor do capital cívico enraizado nas nações.
Com efeito, este capital repousa na escala de confiança e cooperação que servem de elo entre desconhecidos (na Suécia 70% de entrevistados confiam nos outros; no Brasil, 10%). Para o Professor Edward Banfield, o ponto de partida para o baixo capital cívico é a “amoralidade dos laços familiares” que se propaga e contamina o conceito das instituições públicas.
O surto de desonestidade por que passa o Brasil induz, natural ou deliberadamente, a terrível “impressão de que a desonestidade impera e ajuda a racionalização do comportamento desonesto. Se todos são, ninguém é”. Neste ponto, cabe recorrer ao olhar do psicanalista Jurandir Freire Costa no primoroso e atualíssimo ensaio datado de 1988.
Na época, Costa afirmava: “O que vigora, hoje, no Brasil é uma razão cínica” (expressão emprestada pelo filósofo alemão Peter Sloterdijk); complementando “No lugar da indignação, produziu-se um discurso desmoralizante, que diz que toda lei é convencionalismo, formalismo, idealismo, conservadorismo”; e arrematando: “Existe um elo indissolúvel entre o político que lesa o erário público o cidadão que ultrapassa o sinal vermelho e o assaltante que mata”.
De fato, “Todos deixaram de levar em conta a lei”. Sem lei, tudo é possível. Os transgressores, igualmente, destroem o universo simbólico, a normatividade, que é o fundamento da civilização. E aí mergulham no pior dos mundos cujos atributos culturais são o cinismo que sabe o preço de tudo e o valor de nada; a delinquência que resulta do mau exemplo que vem de cima; a violência que está disseminada nos mecanismos de defesa das pessoas, refugiadas nos mecanismos de sobrevivência do “mínimo eu”; finalmente, tudo se agrega ao que Freud chamou de “pânico narcísico” que é o efeito devastador de situações em que o homem perde suas referências de equilíbrio.
Chega-se, então, a um ponto de ruptura cuja saída é a Política, ainda que portadora dos sintomas da doença social. Não há outro caminho senão vencer a paralisia com a capacidade de reação. Quem? Os cidadãos que no seu conjunto seguem responsáveis pelo seu destino e, assim, serão capazes de superar a sensação de impotência, saindo da crise, expurgando da vida pública os culpados, restaurando a confiança e iniciando uma nova era o que, segundo a conclusão de Lara Resende, “exigirá, antes de tudo, novas e exemplares lideranças, ainda que longe de estar evidentes”.
Mais do que um déficit fiscal monumental, a leitura dos artigos confirmam: os governos do PT deram uma excepcional contribuição ao déficit do capital cívico brasileiro.