Cada povo tem um senso de humor peculiar. Uma das peculiaridades do humor brasileiro é rir e fazer com que as pessoas riam do próprio infortúnio.
O Brasil sofre duas longas e históricas secas: a seca da vergonha e a seca d´água, a estiagem que pelas bandas do sertão (mais amplamente, o semiárido) fez morada desde sempre e matou de fome milhões de nordestinos. A solução da seca da vergonha foi proposta por Capistrano de Abreu pela mais sintética constituição do universo: “Artigo único: Todo brasileiro fica obrigado a ter vergonha na cara”. E aíseríamos felizes para sempre.
Do espaço sideral, a exclamação “A terra éazul!" foi uma ilusão de ótica do astronauta Yuri Gagarin: é quase tudo água salgada. E como se não bastasse, o homo sapiens tratou de maltratar a “Terra, planeta água”, uma das mais belas construções poéticas do grande Guilherme Arantes.
Pois bem, a seca chegou ao sudeste brasileiro e de forma devastadora em São Paulo, exatamente para onde fugiam da desdita, humilhados, que nem a ave migratória, a arribação que dánome ao romance de Antonio Sales (década de trinta) e foi fonte inspiração para a pungente, dolorida, sofrida obra do cancioneiro nordestino.
Nesta vasta e bela produção artística não tem espaço para o humor. Basta para verter lágrimas sobreviventes do sol ardente, inclemente, ouvir “Triste Partida”de Gonzaga, canto que mistura a dor lancinante da desesperança e a contrita prece de uma féinabalável em Deus. E se a gente ouve o crepitar da fogueira na metáfora “a terra arder”, bate um sentimento de tristeza e impotência transformadas por Gonzaga e Humberto Teixeira, na segunda música mais marcante do século XX ao lado de Carinhoso, de acordo com o julgamento dos imortais da ABL em 1997.
Se o que dáprárir, dápráchorar na conformação do ethos brasileiro, o humor do Jeca-Tatu, Macunaíma, Pedro Malasartes, Policarpo Quaresma nos transporta para a anarco-carnavalização do Reino de Momo. Aíos compositores das marchinhas brincam de humor/ironia com a água (ou a falta dela).
Aívão alguns exemplos: “Allah–Lá–Ô”, “Cachaça”(vocêpensa que cachaça éágua..), “Saca-Rolha”(as águas vão rolar...), “Chuva, suor e cerveja”. Estas e outras marchinhas de idêntica temática fazem parte dos carnavais passados. Porém, “a crise hídrica”paulistana levou Joaquim Candeias Junior a aproveitar “Lata d´água na cabeça”e concluir que “Maria sem eira nem beira”termina na “ressaca da Cantareira”e, numa toada ainda mais irreverente, o compositor Emerson Boy do “Jegue Elétrico”, aproveitando o vocabulário da moda “volume morto”, manda o pessoal “ir pro Uruguai/brincar com o Mujica/látem meu remédio/vou sair do tédio”. Dando um “tapinha”, certamente.
Deixei por fim a marchinha “Tomara que chova”(composta por Romeu Gentil, cantada pela notável Emilinha Borba, 1950) que dizia: “Tomara que chova/três dias sem parar/a minha grande mágoa/éláem casa não ter água/eu preciso me lavar”.
Esta marcha me remete a uma história que presenciei na fazenda Pirauá, propriedade de minha família onde passava parte das férias escolares. Com curiosidade de adolescente ouvia as conversas de meu pai e tios com a matutada. Tinha um morador, chamado Neco de dona Menininha, rezadeira e parteira. Ele, um cara parrudo, não enjeitava trabalho, nem na roça, nem no curral, ordenhando e, no pasto, vaquejando. Tinha vinte cinco anos e casou com Eulina, cabocla brejeira e boa parideira: cinco anos de casamento cinco bruguelos. Por coincidência, conversavam sobre aquele ano que foi de seca braba. No meio da conversa, sob a sombra de um Ficus exuberante que aplacava o mormaço, meu pai perguntou “Neco, e essa danada da seca? Nunca vi nada parecido”. Neco, prontamente, concordou: “Dotô, por Deus a fé, táfartando água pra tudo. Onte, Eulina, adespois de butá os mininoprádrumir, preguntô, o Neco tu vai pricisá deu hoje, a água tápôca, mai si tu pricisar, aíeu lavo os meu pissuídos”. Eulina fez bom uso da água, tanto que no ano seguinte a gente conheceu o sexto rebento de Neco.