Sentei-me àmesa para tomar o caféda manhã. Dividi o olhar entre o pão nosso de cada dia e a edição JC do dia 29 de julho do corrente ano, caderno Cidades. Manchete: “Crianças comem alimento do lixão e duas morrem”. O pão que mata a fome e, pelo caminho da fé, conforta almas em conflitos, não desceu goela abaixo e fez baixar a xícara de caféao pires, não permitindo que o primeiro gole se transformasse na brasileiríssima “boa média”.
Garganta travada, olhos incrédulos e um corpo paralisado, banhado de vergonha e de tristeza. Vergonha de mim mesmo, assustado pelos trovões da consciência: “Cara que parte cabe a vocênesta tragédia?”.
E na medida em que lia a matéria, o travo inicial dava um nóna garganta: “CATENDE –Na tarde do último sábado, ao sair do lixão de Catende de onde tira o seu sustento, o catador de lixo Joseildo Santana, 22 anos, separou o que podia ser consumido e guardou. A parte do alimento impróprio para consumo (leite e macarrão instantâneo) seria jogada para as galinhas no quintal do agricultor Luiz Amaro da Silva, 44, morador do Engenho Limão, área rural do município. Deixada em cima do fogão, a comida foi alcançada por Letícia Maria da Silva, 7, que levou o macarrão diretamente ao fogo. Dividiu com a sobrinha Rayane Maria da Silva, de um ano e seis meses. Bastaram poucos minutos. As duas, que antes brincavam no quintal com as outras crianças da casa correram pedindo socorro aos pais. Reclamavam de dores na barriga e vomitavam. A família correu para o hospital. Letícia morreu a caminho. Rayane chegou a ser atendida na Unidade Mista de Catende”.
Para completar o drama, vem o comentário desolado de Rosângela, esposa de Luiz Amaro: “Logo naquele dia, que eu tinha conseguido um dinheiro e cuscuz. Ela tinha almoçado cuscuz”.
Não tenho tendências à autoflagelação. Não me considero mais ou menos sensível do que ninguém, mas compartilho do sentimento de que, no conjunto, a sociedade brasileira exerce a responsabilidade social aquém de suas possibilidades. Vou mais adiante: o sofrimento, a humilhação, as violências, os maus tratos, a ausência de compaixão, um noticiário repleto de horrores em que os mais pobres, os mais fracos, os deserdados, sobretudo as crianças, escudos e alvos da miséria humana, tudo concorre para uma banalização do mal de tal sorte que dela nasce uma indesejada indiferença. Nasce e quem quiser que busque explicação. Mas nada justifica. E a razão ésimples: a indiferença mata sentimentos e gente.
De outra parte, a dimensão da tristeza não me permite, nem me permitiu identificar, como pretensioso magistrado imune aos pecados sociais, um bode expiatório e submetê-lo a um furioso libelo acusatório.
No entanto, convém registrar que as crianças foram vítimas da negligência de uma política pública: A Política Nacional de Resíduos Sólidos, instituída pela lei 12.305 de 02 de agosto de 2010, objeto de duas décadas de discussão no Congresso Nacional, dispõe no artigo 54: “A disposição final ambientalmente adequada aos rejeitos, observado o disposto no parágrafo primeiro do artigo 9º, deveráser implantada em até4 anos após a data de publicação desta lei”. Ou seja, a lei não “pegou”e, uma semana antes do dia fixado, o lixão de Catende matou duas crianças.
Por sua vez, pesquisa realizada pela Confederação Nacional dos Municípios revela dados frustrantes. Dos 2332 municípios com até300 mil habitantes, mais de 45% sequer possui o Plano de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos (prazo para formulação encerrou em 2012); mais de 800 municípios destinam os resíduos para lixões; das 577 propostas recebidas pelo Ministério do Meio Ambiente, entre 2011 e 2013, apenas 96 foram contratadas, 8 estão em execução no valor irrisório de R$ 6,1 milhões; das 26 capitais e o Distrito Federal, 16 não têm aterros sanitários e operam em lixões.
Pelo andar da carruagem, os prazos serão dilatados (a pedida équatro anos), o jeitinho vai continuar fazendo vítimas e muito, mas muito lixo vai sujando vidas em quantidade tal que não dápra botar debaixo do tapete.