Torcer é distorcer

Gustavo Krause, | sex, 06/12/2013 - 10:00
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Todo torcedor é chato. Indepedente da idade, uma criança. Crianças, já viu, né?, tirante nossos filhos, são anjinhos, lindas e chatas. Mas sem este personagem o futebol perderia a graça assim como a vida perderia a alegria não fosse o perfume e a beleza da infância. 

E é simples explicar: infantilizado, o torcedor xinga, elogia, chora, briga, confraterniza, vai da depressão à euforia em minutos e devota tanto ou mais ódio ao seu rival do que amor ao seu clube de preferência.

Há quem diga que a origem do nome vem dos lenços nervosamente torcidos pelas damas que, muito bem vestidas, frequentavam, na década de trinta, as competições de um esporte importado do Império inglês - o football -, eurocêntrico, branco, elitista, mais tarde, incorporado pela mestiçagem brasileira que transformou a prosa retilínia, construída com régua e compasso, em poesia curvilínia do futebol mulato, feita de estrofes, livres, leves e soltas, como cantam os repentista, pois, ao final não perdem a rima, da mesma forma que, com a ginga, o meneio do corpo e a magia do pé chegam ao momento sublime do gol. O futebol europeu é prosa; o brasileiro (ainda), poesia. É o que dizia o grande cineasta Pasolini lá pelos idos da década de setenta.

Da origem aos dias atuais, o futebol tornou-se o maior espetáculo da Terra. Com ele, o aparecimento de personagens que, embora tenham sofrido grandes transformações, não perderam características originais. De fato, o futebol artesanal/romântico e o futebol moderno/científico mostraram vários personagens com as características dos tempos históricos de cada um. Dentre eles, porém, o personagem mais fiel às características originais é o torcedor.

Com efeito, a primeira identidade, a do indivíduo-torcedor nasce no espaço local a partir da relação entre o indivíduo e o clube, constituída por razões e emoções explicáveis e inexplicáveis. Projeta-se em círculos concêntricos para o espaço nacional e a global. O sentimento brotou, tudo mais tem razão que a própria razão desconhece.

O torcedor pode ser objeto de um tratado de psicologia eis que no limite mata e morre pelo seu clube; é alimentado pelos laços de solidariedade e pelos conflitos da rivalidade em que o amor pelo clube de preferência se iguala ou ou é suplantado pelo  ódio ao  adversário.

No conjunto, a identidade coletiva compõe uma horda; vive uma atmosfera tribal que canta, grita e extravasa paixão e agressividade; expressa os mais contrastantes sentimentos: vai da euforia à depressão em segundos; torce e distorce, provocando e sendo provocado pelo contágio que transfere ou recebe das tensões da disputa. Este quadro pode ser observado, de modo mais agudo, em torcidas para quem o futebol é a coisa mais importante de suas vidas e o dia de jogo é dia de um culto a uma verdadeira religião. Infelizmente,  colocam em cena a violência desnaturando o mais desprendido dos afetos: ainda que não receba a paga da vitória, o torcedor continua dando sem a contrapatida do receber.

Ainda no conjunto, estão ligados por uma argamassa de grande família, ora resvalando para o espírito guerreiro e clânico que projeta uma auto-imagem megalômana, movida por uma força mítica.

O torcedor tem alma devota e espírito de criança; torce e joga (décimo segundo jogador); aplaude e vaia; idolatra e condena com a mesma intensidade; em todos os casos, o torcedor dá vozes às cores num coro de vozes e canta hinos de louvor à pátria amada eleita pelo coração.

No entanto, é o único caso em que o amor não é cego: é míope ou caolho. O torcedor somente enxerga o que favorece seu time: transforma uma merecida goleada numa virada sensacional, em geral, por culpa do juiz e do famoso "se". 

Por isso, Bill Shankly, gerente e técnico do Liverpool entre 1959 e 1974, conclui seu livro com a seguinte frase: “Algumas pessoas pensam que o futebol é tão importante quanto a vida e a morte. Elas estão muito enganadas. Eu asseguro que ele é muito mais sério que isso”. 

Por tudo isso, torcer é distorcer.

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