Tangolomango, de Carrero: voo além, passo em falso

Cristiano Ramos, | qua, 01/05/2013 - 05:29 | Atualizada em: qui, 02/05/2013 - 15:00
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Festejar a recuperação da saúde de Raimundo Carrero (que sofreu AVC em 2010) é a natural e esperada comprovação do quão admirado sempre foi, seja como escritor, seja como figura humana. Dizê-lo também um importante nome da literatura nacional não é favor algum, conquistou esse lugar destacado faz tempo. Mas afirmar que seu mais recente trabalho – Tangolomango: ritual das paixões deste mundo – é um grande romance? Trata-se de opinião legítima, como legítima é toda convicção que não interdita as ideais alheias. Contudo, se, por um lado ele testemunha impressionante transcendência física e emocional, por outro o livro resulta em exercício narrativo frágil, repleto de deslizes. Enquanto superação humana, voo além; como literatura, um passo em falso.

Tal afirmação não parte do pressuposto de que o restante da obra de Carrero é homogênea. Pelo contrário. Em sua maioria, os seis primeiros romances, de A história de Bernarda Soledade – a tigre do sertão (1975) ao Sombra Severa (1986), apresentam escritor de impressionante força narrativa, embora em processo de amadurecimento; capaz de momentos de extrema beleza, e também de páginas que destoam. Irregularidade mais que compreensível, e da qual o próprio romancista sempre foi cônscio, ao fazer balanço desses trabalhos da juventude.

Depois, foram publicados Maça Agreste (1888), Sinfonia para Vagabundos (1992) e Extremos do Arco-Íris (1992), que sugeriam desenvolvimento seguro, embora lento. Mas eis que, em 1995 chegou Somos pedras que se consomem – ponto alto de seu trabalho, título que merece constar em qualquer tratado sobre literatura brasileira, assim como As sombrias ruínas da alma, volume de contos que lhe valeu o Prêmio Jabuti, em 2000. Nesses dois livros, Carrero logrou raro equilíbrio entre forma e conteúdo. A densidade de suas histórias foi acompanhada de uma escrita sem afetações trágicas ou exageros de economia (aquela mesquinhez no estilo tão comum em nossos dias, em que até a literatura acaba contingenciada). Tampouco os cálculos da engenharia chamaram mais atenção do que as linhas do edifício.

De lá para cá, realizou ainda a exaustiva jornada formal de Ao redor do escorpião… uma tarântula? (2003), seguido de O amor não tem bons sentimentos (2007), A minha alma é irmã de Deus (de 2009, vencedor do Prêmio São Paulo, e lançado pouco antes de seu grave problema de saúde) e Seria uma sombria noite secreta (de 2011, mas finalizado antes do AVC). Nestes projetos recentes, a mídia reforçou tendência de veicular Raimundo Carrero como autor extremamente técnico, cujas obras expressam o seu “domínio da linguagem”. Pavoroso lugar-comum, posto que alguém pode até dominar as técnicas, os métodos que assumiu como princípio realizador, mas nunca a linguagem. Esta é indomável, porque fenômeno dinâmico, complexo e incompleto, dependente do contexto e do leitor, entre outros elementos que fogem ao controle de qualquer um.

Clichês à parte, ninguém duvida que Tangolomango seria outro livro, caso escrito em situações menos adversas.  Recuperando-se do acidente vascular que lhe paralisou parcialmente braço e perna esquerdos, sofrendo também para conseguir falar, Carrero começou ditando a narrativa, para depois assumir a empresa, digitando com um só dedo todos os caracteres das 128 páginas. A condição debilitada, a mudança no ritmo de composição, os efeitos consequentes também quando da revisão do texto… Tudo interferiu dramaticamente no processo criativo e no resultado final.

O reconhecimento dessa hercúlea e comovente batalha, porém, não pode determinar a leitura crítica do Tangolomango. Se bem que cabe derradeira ressalva: mesmo que não tivesse enfrentado o AVC, ainda que transbordando saúde pelas tampas, o trabalho seria desafio complicadíssimo. Contar as idas e vindas da Tia Guilhermina (personagem que já aparecera em O amor não tem bons sentimentos), seus instantes de dor e seus périplos carnavalescos, exigiu que Carrero lidasse incessantemente com vozes e sintaxes diversas, com cenas, cenários e climas opostos, conflitantes mesmo. Tipo de construção que requer demais, onde as chances de perder o prumo são potencializadas.

Embora autor e maioria dos críticos tenham vendido Tangolomango de modo diferente (José Castello chegou a defini-lo como “impecável”, o que daria outra boa discussão sobre a natureza do fenômeno literário), não existe uma seção sequer que não sofra com essas dificuldades, sendo que algumas páginas foram particularmente afetadas, expondo de maneira mais nítida as fragilidades do texto. Segue um exemplo, com grifos nossos:

“Imitava o pai, aquele homem magro, puxando a idade, que voltava para casa com o pacote de pão entre os dedos – uma mania de tantos e tantos anos, trazer o pão para o café da noite, que alguns chamavam de jantar, naquela forma de caminhar que ela tanto admirou e terminou imitando, parecia carregar as dores do mundo nos ombros. Um andar leve, nem de longe apressado, de quem tem a vida inteira para ir e vir, como se não tivesse filhos, filhas e mulher esperando-o, talvez até com fome, para a refeição”.

Além da pontuação truncada, dos períodos confusos, o andar do pai reflete o próprio projeto. Não convence, é soma de adjetivos desconexos, de imagens que não casam. Passos leves e irresponsáveis que carregam o peso do mundo?

A condição física e mental reforçou o caráter trágico e sombrio que marca a prosa de Carrero, ao mesmo tempo em que Tangolomango propôs essa “bagunça”, expressar a ideia de “festa, confusão, morte, delírio”, como explicou o próprio romancista, em reportagem da Folha de S. Paulo. E, para esse mesmo periódico, a resenha de Luís Augusto Fischer registrou alguns dos efeitos de tanta mistura e das opções narrativas tomadas pelo autor: “há algo de instável e de frágil no nexo entre o enredo e a narração: os fatos (tia que deseja sexualmente o sobrinho, matricídio etc.) vão na linha da tragédia, mas o tratamento dado a eles pela narração os encaminha para o drama burguês”.

Romance adentro, coisa piora. Quanto mais cotidiano e carnavalesco, menos ele consegue equilibrar tais elementos contrários ou dispersos. Os poucos diálogos que surgem também são fracos, não batem com a construção das personagens. Além das descrições de gosto bem discutível.

O fim trágico de Tia Guilhermina fecha a custosa narrativa, mas não encerra a leitura. Impressão derradeira é de testemunho de um ressurgimento, ainda que encenado em palco tão precário. Carrero foi taxativo: “Tangolomango me salvou! Não fosse por ele, teria morrido ou enlouquecido”. E, por isso, somos eternamente gratos. Nenhuma admiração ou afetuosa amizade pode, entretanto, transformar um bote salva-vidas em excelsa realização literária.

Quando olharmos para trás, não veremos em Tangolomango o ápice de uma carreira, como crê Raimundo Carrero. Muito felizes e satisfeitos, nós recordaremos uma narrativa que, mesmo não publicada (e talvez esse devesse ter sido seu destino), cumpriu importante papel. Não é um grande romance. Não é sequer um bom livro. Contudo, e do seu modo enviesado, foi muito mais: sobre o breve arco de um passo em falso, iniciou voo além – intangível e inestimável.

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