Futebol de barrinha: a espontaneidade de uma tradição
Na rua, usando chinelos, tijolos ou barras feitas de ferro ou PVC, a pelada preferida da meninada, com regras decididas na hora, continua sendo uma das brincadeiras mais legais da infância
Diante toda a tecnologia atual, muitas vezes as brincadeiras de hoje em dia têm se limitado a um quarto, uma sala e só. Os olhos ficam fixados em uma grande tela, ou em uma que cabe nas mãos. A companhia dos amigos passa, de física, para a virtual. As brincadeiras de rua - incluídas as peladas de futebol - parecem cada vez mais perder espaço entre os passatempos da meninada.
Mesmo com tanta mudança, quem nunca jogou barrinha? Isso mesmo, barrinha, a brincadeira derivada do futebol tradicional não morreu. Com diferentes nomes pelo Brasil, como caixote, o jogo mais espontâneo que há no futebol de rua resiste como uma tradição. Nas ruas da Região Metropolitana do Recife ainda é possível observar quem joga e também quem se utiliza do futebol de barrinha pra viver.
Nesta modalidade, não existe regras premeditadas. Cada grupo joga do seu jeito. Mas, na maioria das vezes, são dois times, ambos sem goleiros, que precisam fazer a bola entrar no pequeno gol. O time que marcar o número de gols previamente determinado elimina o outro time e continua jogando até ser eliminado.
A barra é pequena, tanto em largura, quanto em altura. Pode ser de ferro ou de PVC, mas chinelos, tijolos, pedaços de pau e qualquer coisa que esteja à mão pode ser usado para se demarcar a meta. O que importa é sinalizar onde está o gol. O tamanho da barra precisa estar igual para os dois times, e para medir vale contar os passos de uma trave para a outra.
Na Praça Paulo Freire, que fica no bairro da Madalena, todo dia, faça chuva ou faça sol, tem uma turma de amigos que se reúne nesse período de férias durante as tardes para jogar barrinha.
Ao chegar, o LeiaJá encontrou uma típica cena do futebol de rua. Durante um dos jogos, a bola foi parar no restaurante vizinho ao parque, e por causa disso o segurança do estabelecimento a confiscou e afirmou que só devolveria à noite. Depois de muita conversa, a bola foi devolvida. Antes de o jogo começar, Ana Clara, de 10 anos, explicou as regras: eram dois times jogando, e um do lado de fora esperando a sua vez. Não existe pênalti, mas as faltas eram marcadas. O time que levasse 10 gols saía e dava lugar a equipe que estava esperando; no mais, tudo era igual ao futebol tradicional.
Ana Clara era a única menina jogando barrinha entre os meninos. Segundo ela, outras meninas jogam vez ou outra. “Elas vêm às vezes. Mas quase sempre só eu que quero jogar. Hoje mesmo elas não vieram, mas mesmo assim eu vim”, conta. A menina afirma também que vem porque gosta de futebol. E que os meninos – dois deles eram de sua família – não viam problema na participação dela. Ao ser questionada sobre qual em posição prefere jogar, Ana mostra certeza: “Atacante. Gosto de ficar na frente e fazer gols”.
Brincadeira é também fonte de renda
Mas nem só de diversão se resume o futebol de barrinha. A rede da barra, propriamente dita, é considerada artesanato. Com isso, a brincadeira, além de ser imortal entre adultos e crianças, também é fonte de renda para muitas pessoas.
Astrogildo Silva, de 72 anos, mais conhecido como ‘Gildo das barras’, trabalha há 43 anos no bairro das Graças, no Recife, vendendo barrinhas. Gildo trabalhava com venda de plantas, e depois de perder tudo em uma enchente, sentiu a necessidade de recomeçar e descobriu com um pedido do filho, ainda pequeno, que sabia fazer as barras de futebol.
“Depois que eu perdi tudo, eu aprendi a ser artesão. Eu comecei há muito tempo. A primeira barrinha que fiz foi para o meu filho. Depois que eu consegui fazer, veio a ideia de continuar. Fiz uma de ferro. Daí veio, além da barra, a cesta de basquete e a rede de vôlei”, conta Gildo.
Ao LeiaJá, Gildo afirma que as vendas diminuíram, mas ele ainda recebe muitas encomendas de colégios, escolinhas de futebol e de condomínios. “A venda é regular. Mas diminuiu bastante. Na verdade, diminuiu em todo o lugar. Mas pelo menos eu não deixo de vender. É pouco, mas eu vendo. Eu sou muito conhecido. O pessoal me conhece há muito anos”, explica.
De acordo com o artesão, o público que compra as barras é bem variado, mas na maioria das vezes são crianças. “Quem mais compra é criança. Alguns adultos ainda compram também. Mas quando são meninos pequenos, eu sempre digo: 'leve a barrinha, mas quando for pra Seleção lembre de mim'”, brinca.
Gildo trabalha na esquina de um colégio tradicional e muito conhecido, no bairro das Graças. Segundo ele, o ex-jogador da seleção brasileira Juninho Pernambucano usou suas barrinhas: “Juninho Pernambucano estudou aqui, nesse colégio, e jogou com as minhas barrinhas”.
Além vender suas barras, Gildo consegue renda também fazendo redes para clubes de futebol de campo. “Eu faço rede oficial pro Santa Cruz, pro Náutico. E de qualquer tamanho. Pro Sport só foi uma vez”, relembra, com orgulho.
A tradição da fabricação das redes tem passado de pai para filho. Segundo Gildo, a rede atual do clube tricolor foi o seu filho quem fez. E dois de seus filhos trabalham com ele.
Mesmo com as vendas em baixa, 'Gildo da barrras' garante que dá pra sobreviver apenas fazendo as barrinhas e redes. “Eu vendo uma barrinha ou duas. Mas dá pra viver, mesmo que devagarzinho. Hoje em dia é tudo mais difícil. Ninguém vende muito não. Há muitos anos já foi muito bom. Hoje está fraco demais, mas mesmo fraco dá pra viver”, revela.
“Eu não fiquei rico porque não expus o meu trabalho, mas é o meu jeito de viver”, conclui.