Delegado que investigava COI e CBF está na "geladeira"

O inquérito que resultou em nove indiciados e significativas prisões como a de Patrick Hickey, andava cada vez mais na direção de figuras maiores ainda do mundo olímpico

Agência Sportlightpor ter, 17/01/2017 - 04:59
Reprodução/Youtube Pat Hickey foi preso durante os jogos olímpicos no Rio Reprodução/Youtube

Um delegado investiga o Comitê Olímpico Internacional (COI) e Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Chega perto de peixes graúdos. E subitamente vai parar na geladeira. Você já viu esse filme? Ele está em cartaz.

Acompanhe o roteiro. Contém “spoiler”, ou seja, revela o fim da história: a ida para a geladeira de quem investigava.

1 - Em agosto de 2016, a Delegacia de Defraudações (DDEF), da Polícia Civil do Rio de Janeiro, inicia investigação de repercussão mundial sobre a “Máfia dos Ingressos” que atua como cambista em Olimpíadas.

2 - Com o decorrer das apurações, figurões do mundo olímpico vão surgindo como participantes. Patrick Joseph Hickey, presidente do Comitê Olímpico Irlandês e ex-executivo do COI, e outros integrantes do grupo são presos.

3 - O caso se aproxima cada vez do presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI), após mensagens entre Thomaz Bach e envolvidos serem apreendidas.

4 - Convidado a depor, Thomaz Bach surpreende a todos e não volta ao Rio para os Jogos Paraolímpicos, rompendo tradição olímpica.

5 - Depois de o Comitê Olímpico Irlandês se recusar a pagar fiança, a Associação de Comitês Olímpicos Nacionais (ACNO) paga R$ 1,5 milhão e Hickey é solto. A ACNO, que tem forte influência de Bach, alega “razões humanitárias” para justificar pagamento.

6 - Em outro caso, o titular da DDEF, Ricardo Barboza, abre investigações no dia 31 de outubro para investigar o Departamento de Registros e Transferências da CBF por suspeitas de fraude.

7 - No dia 22 de novembro, com pendências ainda na investigação da “Máfia dos Ingressos” e com o caso da CBF aberto, o delegado Ricardo Barboza é transferido da DDEF para o Departamento Geral de Polícia Especializada (DGPE).

Observação: no caso em questão, a ida para o Departamento Geral de Polícia Especializada (DGPE) foi considerada por diferentes fontes ouvidas como uma geladeira. Expressão para designar quem é tirado de ação e posto em lugar onde não será efetivo.

O caso une o Rio olímpico com o berço dos jogos, a Grécia. Lá também existia a prática do “ostracismo”, que significava o total afastamento de um cidadão do cenário. A essência, no entanto, era distinta: na antiguidade, se fazia por plebiscito e por outras razões.

Por aqui, o que se sabe é que a investigação que resultou em nove indiciados e significativas prisões como a de Patrick Hickey, andava cada vez mais na direção de figuras maiores ainda do mundo olímpico. Com a prisão do presidente do Comitê Olímpico da Irlanda, Patrick Hickey, foram interceptadas mensagens trocadas por e-mail com o presidente do COI, Thomas Bach, com as solicitações do primeiro por mais ingressos.

Pedido feito, pedido atendido: mais 296 ingressos foram destinados para Hickey. O irlandês citava por exemplo que na cerimônia de abertura, recebera apenas 38 ingressos, e quatro anos antes, em Londres, recebera 84. E seguia em suas queixas. Sobre o encerramento, a queixa era da ordem de 60 ingressos. Em Londres recebera 88 e no Rio apenas 28. E assim seguia detalhando na mensagem o seu desejo por mais ingressos. Os que iria vender.

No total, foram interceptados 65 e-mails entre os dois, desde 2014 até os jogos de 2016.

Ao chegar a tal resultado que mostrava um crescimento atípico no volume de convites do COI para o irlandês, logo após o fim dos jogos, o delegado Ricardo Barboza, que além de titular da DDEF era diretor do Núcleo de Apoio aos Grandes Eventos (NAGE), manifestou que iria intimar o presidente do COI como testemunha do caso. Esperado para as Paraolimpíadas, Thomas Bach não compareceu na edição, um caso absolutamente fora do comum.

O escândalo da “Máfia dos Ingressos” ganhou repercussão mundial. Outro inquérito potencialmente explosivo e envolvendo outra grande e poderosa instituição do esporte brasileiro também foi instaurado na mesma DDEF, pelo mesmo delegado. No dia 31 de outubro, Ricardo Barboza abriu investigação contra a CBF com a suspeita de que o Boletim Informativo Diário (BID) era fraudado para favorecer clubes de dirigentes ligados a CBF.

Reynaldo Buzzoni, responsável pelo setor na CBF chegou a estar na delegacia, sem conseguir esclarecer as dúvidas do delegado e por isso o inquérito foi aberto. Outros dirigentes seriam intimados a depor, inclusive o presidente da CBF, Marco Polo del Nero.

Antes disso, e em meio ao aprofundamento das investigações da “Máfia do Ingresso” das Olimpíadas e o inquérito da CBF instaurado, o delegado Ricardo Barboza é transferido. Mais exatamente no dia 22 de novembro. A mudança se dá um mês após a troca de Secretário de Segurança, com a saída de José Mariano Beltrame e entrada de Roberto Sá. O delegado José Luiz Silva Duarte assume a DDEF.

A Polícia Civil é órgão do governo do estado. Nos últimos anos, Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão foram muito próximos aos eventos e dirigentes olímpicos. A reportagem procurou ouvir a Secretaria de Segurança (SESEG) do estado sobre o andamento dos inquéritos e ainda sobre a transferência de um delegado em meio a casos tão rumorosos. A questão foi reencaminhada pela SESEG para a Polícia Civil, que através da assessoria de imprensa respondeu em nota:

“A Polícia Civil informa que foram concluídas em setembro de 2016 as investigações sobre o esquema internacional de venda ilegal de ingressos para as Olimpíadas Rio 2016. A investigação terminou com nove indiciados, entre eles cinco diretores da empresa irlandesa THG, que vendia ingressos para os jogos por preço muito superior ao oficial. Patrick Joseph Hickey, presidente do Comitê Olímpico Irlandês e ex-executivo do Comitê Olímpico Internacional, é apontado nas investigações como um dos principais envolvidos no crime. Patrick chegou a ser preso durante os jogos, mas conseguiu habeas corpus. Os policiais civis do Núcleo de Apoio aos Grandes Eventos (NAGE) apreenderam, durante as diligências realizadas, HDs externos, celulares e tablets. Neles havia uma série de planilhas que indicavam o repasse de ingressos de comitês olímpicos para as empresas envolvidas no esquema de cambismo. No tocante às mudanças de titularidades nas Delegacias de Polícia, a Instituição esclarece que trata-se de praxe na administração e tem como objetivo a difusão de novas práticas frente aos trabalhos de polícia judiciária”.

De acordo com as apurações da reportagem com diferentes fontes, a investigação sobre a “Máfia dos Ingressos”, cujo Registro de Ocorrência é o 00032/2016, teve um inquérito inicial, e este gerou desdobramentos em outras investigações sobre o tema, que deveriam gerar novos inquéritos e tratar, entre outras coisas, da participação do presidente do COI. O inquérito sobre a fraude na CBF segue aberto.

A reportagem tentou ouvir o delegado Ricardo Barboza, que não irá se pronunciar sobre o caso dos inquéritos. A reportagem voltou a tentar contato para saber sobre as razões da transferência, sem sucesso.

A venda de ingressos nos Jogos Olímpicos no mercado paralelo é uma questão antiga e presente em todas as edições dos Jogos Olímpicos, assim como as relações de dirigentes de comitês com tais esquemas. Um dos grandes nomes desse universo e sempre apontado como um dos grandes operadores de todo o esquema de ingressos vips vendidos no paralelo é o croata naturalizado americano Sead Dizdarevic. Conhecido por ser peça decisiva no colégio eleitoral que define as sedes olímpicas e posteriormente por deter boa parte desses ingressos vips e revender em pacotes de hospitalidade.

No Brasil, a presença de Dizdarevic, ainda que sempre agindo nos bastidores, se fez de forma muito próxima aos organizadores: esteve no país pela primeira vez em 2009, cinco meses antes da escolha da sede. Depois voltou mais 13 vezes antes dos Jogos. E comprou a agência de viagens Tamoyo, detentora do monopólio da venda dos milionários pacotes de hospitalidade que negociaram os combos de ingresso/hospedagem da Olimpíada no Brasil, e que foi a agência oficial do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) desde a ascensão de Carlos Arthur Nuzman à presidência até 2012, além de parceira em contrato de passagens do CoRio, que tem o mesmo Nuzman na presidência.

É a agência responsável pelas milionárias transações das vendas de passagens aéreas para boa parte das confederações esportivas nacionais, turbinadas por verba pública vinda das leis de incentivo e convênios com o Ministério do Esporte.

Tal histórico de atuação a cada quatro anos dos detentores destes ingressos e as estritas relações com altos membros da corte olímpica, pavimentando a estrada para este cambismo vip, indica que Patrick Hickey e os demais devem ser apenas o meio da viagem. Mas, ao que tudo indica, a outra parte deste caminho repousará na geladeira de uma delegacia carioca.

Por Lúcio de Castro, da Agência Sportlight de Jornalismo Investigativo

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