Cinema russo desmonta mito de Lênin

A propaganda comunista fabricou para Lênin a imagem de um asceta altruísta e humanista, mas o documentário o traz como sanguinário, doente mental e pequeno burguês

qua, 06/11/2019 - 12:05
Yuri Kadobnov O diretor de cinema Vladimir Khotinenko conversa com a AFP sobre seu filme sobre Lênin, em 8 de outubro de 2019, em Moscou Yuri Kadobnov

Trinta anos após a queda da União Soviética, Lênin aparece desmitificado em um documentário divulgado pela televisão russa, onde é qualificado de sanguinário, doente mental e pequeno burguês.

A série "Lênin", programada para ser exibida em breve pela primeira rede de televisão nacional Pervy Kanal, quer "acabar com o mito de Vladimir Ulianov", o nome verdadeiro do fundador da URSS, segundo o roteirista, Igor Lipin.

Para realizar os 18 episódios da série, dez oficiais dirigidos pelo ex-chefe de arquivos da FSB (antiga KGB), o general Vasili Khristoforov, mergulharam durante quatro anos na documentação dos serviços secretos.

"A lenda do amável Lênin versus o mau Stalin é falsa, porque foi Lênin que lançou o terror vermelho", diz Lipin à AFP, a poucos dias do 102º aniversário da Revolução bolchevique.

O documentário publica uma carta de agosto de 1918, na qual Lênin pede a morte de dois milhões de camponeses considerados ricos, os "kulaks", grupo que foi violentamente reprimido. Um mês depois, criaria os campos de concentração para "isolar" as classes inimigas.

Doente mental?

Outros documentos estabelecem, segundo os autores da série, que Lênin sofria de transtornos mentais e que sua mãe havia escrito à polícia em abril de 1898, aludindo ao "preocupante estado psíquico" do jovem revolucionário e a uma "doença mental que afeta a família".

Esta dureza do documentário contrasta com o culto à personalidade de Lênin imposto na URSS durante 70 anos, com canções, livros, filmes e slogans.

A tal ponto que uma piada soviética contava o lançamento de uma cama de três lugares, já que "Lênin está conosco".

A propaganda comunista fabricou para Lênin a imagem de um asceta altruísta e humanista, em contraste com o tirano Stálin. Até hoje Lênin mantém uma certa popularidade entre a população russa: 41% dos russos continuam tendo uma imagem positiva deste líder comunista, segundo uma ampla pesquisa de 2017.

Pelo menos 80% dos russos se opõem ao desmonte de suas estátuas, ainda presentes em todo país. E seu mausoléu, com seu corpo embalsamado, continua na Praça Vermelha.

As novas autoridades russas em geral ignoram Lênin e preferem destacar o papel de Stálin na vitória sobre os nazistas.

De certa forma, "Lênin foi esquecido, passou sob a sombra de Stálin", diz à AFP o diretor de cinema Vladimir Khotinenko, cujo filme "Lênin. A Iminência" estreou no fim de outubro na Rússia.

Longe de descrever uma vida de proletário, o filme mostra Vladimir Ilich Ulianov com um chapéu-coco, uma gravata-borboleta e uma bengala, ou desfrutando de Wagner na ópera.

Esta superprodução relata um controverso episódio do retorno de Lênin, então chefe de um pequeno partido revolucionário e exilado na Suíça, à Rússia em 1917.

Dinheiro alemão

Aquela viagem de trem pela Alemanha teria sido impossível sem o consentimento do Kaiser, afirma-se no filme.

Pouco depois, a Revolução de outubro derrubou o czar e, em março de 1918, o líder bolchevique assinou a paz com o Reich, abandonando os aliados dos russos.

O ator que interpreta Lênin, Evguéni Mironov, destaca a suspeita que recai sobre o dirigente revolucionário de ter financiado seu combate com dinheiro do inimigo alemão.

"Lênin nunca quis a Rússia, nem os russos, esses 'muyiks' (camponeses) preguiçosos. Para ele, a Rússia não era mais do que o início de seu projeto de revolução mundial", afirma o ator em declarações nesta terça ao jornal "Izvestia".

O porta-voz do Partido Comunista Russo (KPRF), Alexandre Yushenko, lamentou que se busque "desacreditar Lênin" quando as desigualdades econômicas e sociais impulsionam as pessoas a tomarem as ruas "na Rússia e no mundo todo".

"Isso demonstra que as ideias de Lênin continuam vigentes nos povos que se elevam contra os donos do capital", disse ele à AFP.

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