Da proibição às mestras: mulheres se apoderam da capoeira
Presença delas tem crescido bastante na prática dessa manifestação tombada como patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade
A capoeira nasceu nas senzalas do Brasil, época em que a escravidão era legalizada no país, através da necessidade dos negros escravizados de resistirem e lutarem contra um sistema de exploração e grande violência. Foi marginalizada, perseguida e proibida entre 1890 e 1930, mas, com o crescimento de suas manifestações e adeptos, acabou por transformar-se em um símbolo identitário brasileiro sendo reconhecida, em 2008, como Patrimônio Nacional e, em 2014, como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura, a Unesco.
Por tratar-se de um instrumento de luta e resistência, natural que as mulheres se interessassem pela manifestação, uma vez que também carregam um histórico de enfrentamento à uma sociedade machista e patriarcal. No entanto, a capoeira sempre foi considerada um espaço masculino, tendo sua imagem ligada à agressividade e valentia. Sendo assim, em um primeiro momento, às mulheres era relegada a posição de observadoras. No máximo, atuavam como companheiras dos capoeiristas homens.
Aquelas que insistiam em praticar a capoeira precisavam se esconder atrás de pseudônimos que dificultavam sua identificação. Daí surgiram 'personagens' célebres como Calça Rala, Satanás, Nega Didi, Maria Para Bonde e Maria 12 Homens, que teriam feito história. Essas mulheres capoeiristas, e algumas outras da época, eram muitas vezes consideradas masculinizadas, violentas e até perigosas.
O cenário começou a melhorar quando o Mestre Bimba, importante e reconhecido mestre baiano, um dos mais importantes da história da arte marcial brasileira, abriu a roda para a participação feminina. Ele também levou a prática para dentro das academias, em 1932 - a primeira de sua propriedade -, e para o exterior, um pouco mais tarde. Outro mestre muito respeitado no meio, Pastinha, contemporâneo de Bimba, também mostrava-se simpático à presença delas no jogo dizendo que este era "para homem, menino e mulher, só não aprende quem não quer".
Assim, as mulheres começaram a ter maior liberdade para jogar e, também, tornarem-se mestras, agregando à manifestação particularidades que só poderiam ser inseridas por elas. Tornando a prática muito mais democrática, uma vez que na roda todos jogam de maneira igualitária, a presença da mulher na capoeira acaba funcionando como instrumento de promoção da tolerância, respeito e equidade.
No entanto, o cotidiano de capoeiristas ainda não alcançou esses ideias por completo. O preconceito e discriminação insistem em dar as caras, fazendo as capoeiristas perpetuarem o espírito de luta historicamente atribuído à manifestação. Izabel Cristina de Araújo, a Mestra Bel, lida com essa realidade desde 1989, quando começou a praticar a capoeira. Para ter vez e voz nesse espaço, a mestra foi além do jogo e estudou a manifestação no seu mestrado em Antropologia e no doutorado em História, realizado pela Universidade Federal de Pernambuco.
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A mestra fala sobre as dificuldades ainda presentes: "O preconceito ainda é grande. ainda acontecem violências físicas e simbólicas nas rodas e treinos. O assédio ainda é uma realidade. Mas as redes de mulheres na capoeira tem ajudado a visibilizar essas violências, identificar os agressores e construir estratégias de não se deixar agredir".
Com o espírito de resistência inerente a 'capoeiras' e mulheres, Izabel fundou um desses grupos de apoio há 10 anos, o É Cor de Rosa Choque. São cerca de 50 mulheres, de distintas classes sociais, idades, etnias e religiões, que se juntam para praticar e trocar experiências. Além dela, Daniela Gouveia, a Mestra Dani, e alunas do Centro de Capoeira São Salomão, localizado atualmente no bairro da Várzea, Zona Oeste do Recife, participaram do surgimento do projeto. "Estávamos com filhas pequenas e precisávamos ter um horário para treinar e fortalecer nossos saberes na capoeira, entre nós mulheres", conta falando sobre o que motivou o surgimento do grupo que realiza suas atividades no São Salomão.
Desde então, Mestra Bel tem visto o número de mulheres aumentar nas rodas, assim como a quantidade de mestras e contramestras, em todo o país. "Quando comecei na década de 1980, o número era bem menor. Hoje muitos grupos têm lideranças mulheres. Participo de um grupo de WhatsApp de mestras e contramestras no Brasil, que está fazendo esse trabalho de levantamento e já se somam mais de 400 mulheres mestras e contramestras de Capoeira", festeja.
Para a mestra, a participação feminina no jogo só tem a contribuir, fazendo com que a prática ganhe novas perspectivas e possibilidades: "A presença das mulheres na capoeira traz outros olhares para essa prática, que recuperam significados de uma luta pela liberdade de ser no mundo. A resistência é uma palavra e vivência conhecida das mulheres é temos aprendido a exercitar na capoeira". Além disso, existe um trabalho de inclusão social, a partir do convite das capoeiristas para outros possíveis praticantes talvez pouco prováveis nas rodas: "A Mulher também traz novos públicos para a capoeira, como crianças e idosos, afirmando os dizeres do mestre Pastinha (mencionado acima). Assim elas provocam uma inclusão social na capoeira e uma reflexão sobre igualdade de gênero e busca pela liberdade".
Jogar e compartilhar
Desde seu primeiro ano de atuação, o movimento É Cor de Rosa Choque tem promovido o Encontro Feminino de Capoeira - A Mulher Entrou na Roda. O evento reúne mulheres capoeiristas, mestras e contramestras de todo o país e promove além das rodas, debates, vivências e aulas. Os homens também podem participar, contudo, como frisa Mestra Bel, o "protagonismo é todo das mulheres".
A décima edição do encontro abre sua programação nesta sexta (29) e segue com atividades até o domingo (31). São esperados cerca de 120 participantes além de nomes importantes da capoeira atual como Mestra Monica (PE), Mestra Di (PE), Dona Nalvinha (BA), Formada Chapinha (BA), Mestra Brisa (BA), Contramestra Jujuba (RJ) e Mestra Áurea (PR). "Vamos contar e discutir na abertura do evento sábado, pela manhã, os significados de manter uma luta de gênero dentro da capoeira, seus limites e suas possibilidades. Apontaremos nossas conquistas e nossos projetos para manter cada vez mais visível e forte a presença das mulheres na capoeira, reconhecendo suas contribuições diversas", diz a Mestra Bel.
Fotos: Reprodução/Facebook