A desconstrução da “família perfeita”, por Yasmina Reza
Peça "Deus da carnificina" é competente em demonstrar a "dramédia" que realmente somos
O cenário é basicamente composto por livros empilhados, uma enorme mesa central feita com peças coloridas de Lego e um telefone azul vintage responsável por alguns dos momentos mais cômicos da peça.
Os casais Michel (Orã Figueiredo) e Verônica (Deborah Evelyn), Alan (Paulo Betti) e Anete (Júlia Lemmertz) constroem a história de “Deus na Carnificina: uma comédia sem juízo”, que esteve em cartaz neste sábado e domingo (19 e 20), no Teatro da UFPE, baseados em um dos alicerces mais básicos e contundentes da (falida?) instituição “família”: os filhos.
Entre os dois casais, o enredo é um só: o filho de Anete e Alan bateu no filho do outro casal com uma paulada que “desfigurou” seu rosto, quebrando dois dentes do garoto. Violência esta efetivada após ter sido xingado pelo colega.
A cordialidade dos dois casais que tentam chegar a um acordo sobre qual a melhor forma de encarar a situação vai, aos poucos, transformando-se num estapafúrdio jogo de vaidades, em que os problemas conjugais e pessoais dos quatro adultos envolvidos na situação se sobrepõem ao mote inicial do desfecho entre os dois garotos.
Críticas sociais são feitas através das personagens estereotipadas, como o marido que é ausente na relação familiar – e talvez responsável pela veia “agressora” do filho -, a mulher “posuda” que se diz “culta” e entendida de obras de arte e de autores como James Joyce (como se isso revela-se algo sobre seu caráter enquanto ser humano) e a esposa comedida que, ao beber, transforma-se em uma mulher cheia de amarguras e que se descompostura diante dos fatos.
Uma “dramédia” à la Nelson Rodrigues em “A vida como ela é”, com cenas hilariantes como quando Anete, a comedida esposa de Alan, bebe conhaque e começa a revelar seu lado mais ácido ao jogar o celular do marido - que toca sem parar - no jarro de plantas. Ou quando o ator Orã Figueiredo, essencial em diversos momentos de risadas da platéia, faz o tipo homem “bonachão”, meio relapso e sempre contradizendo sua “contundente” mulher no que ela diz.
“Deu vontade de sair soltando os cachorros também, me diverti bastante”, disse a advogada Raquel Pires. Já para a funcionária pública Carolina de Andrade o melhor da peça foram os assuntos abordados. “É um humor negro que faz a gente refletir sobre a falta de limites entre as crianças pequenas em questão. Me surpreendeu bastante o texto em si e a forma como ele faz rir e refletir ao mesmo tempo”, opina.
A peça foi escrita pela francesa Yasmina Reza, dirigida pelo brasileiro Emílio de Mello e contracenada por qualquer um de nós, obrigados a viver sob à mira de olhares "politicamente corretos" da sociedade.