Cabo: maternidade e emprego tiram meninas da escola
Levantamento realizado pelo Centro de Mulheres do Cabo aponta que trabalho informal e maternidade estão entre as principais causas de abandono escolar de mulheres no município
Mãe desde os 14 anos, Danielle sonha em retornar à escola. (Júlio Gomes/LeiaJá Imagens)
Grávida aos 14 anos de idade, a então estudante Danielle Cristina Campos desenvolveu cedo uma relação peculiar com seu corpo e com a passagem do tempo. Enquanto gestava a pequena Ayla, fruto de uma relação casual com um conhecido e atualmente com dois anos de idade, conheceu o atual marido e se mudou para a comunidade de Mercês, formada em torno de uma antiga usina no Cabo de Santo Agostinho. Sentido-se velha demais para a escola, Danielle passou a conviver a maior parte de seu tempo com os idosos nas calçadas das pequenas ruas de barro. “Eu tinha vergonha de ir para a aula, de o povo ficar me julgando porque eu estava grávida. Abandonei a escola no sexto ano”, lamenta. A história de Danielle, agora com 16 anos, integra o “Diagnóstico Participativo sobre a Evasão Escolar das Meninas e Jovens Mulheres no município do Cabo de Santo Agostinho”, realizado pelo Centro de Mulheres do Cabo (CMC), com o apoio do Fundo Malala, no âmbito do projeto “Meninas em Movimento pela Educação”.
Elaborado a partir da escuta de 96 jovens egressas do sistema público de ensino residentes no município, o levantamento do CMC indica que a gravidez na adolescência figura entre as principais causas de evasão. Segundo os dados, 52,1% das entrevistadas já engravidaram pelo menos uma vez, na maior parte dos casos, de forma indesejada (62,7%). Em todas as situações coletadas pelo questionário, as jovens mães assumiram os filhos e vivem com eles.
“Tenho vontade de terminar meus estudos, me sinto parada. O problema é que não tem quem fique com a minha filha e aqui só tem escola para crianças com quatro anos ou mais. Eu também ajudo com a limpeza da casa e com o comércio do meu sogro, que está meio doente”, comenta Danielle.
A enfermeira da Unidade Mercês de Estratégia de Saúde da Família Clara Lopes Bezerra, que colaborou com a busca ativa de entrevistadas para a pesquisa, conta que casos como o de Danielle são comuns na comunidade. “Muitas vezes essas meninas engravidam de um ficante, que logo desaparece, são relacionamentos que dificilmente vão adiante. Aqui na unidade, atendemos muitas moças que dizem abandonar a escola logo no início da gravidez, por acharem que não vão dar conta dos estudos”, ressalta. A profissional de saúde relata ainda que também atende casos de gravidez intencional ainda na adolescência. “Elas não têm perspectiva de outra coisa e as famílias, muitas vezes, consideram a gestação nessa fase da vida normal. Há também um fator cultural”, completa.
Enfermeira, Clara Lopes Bezerra acompanha de perto as jovens mães do município. (Júlio Gomes/LeiaJá Imagens)
Informalidade
Em sua maioria negras (81,2%), as jovens que estão fora da escola também costumam abandonar os estudos para trabalhar, em geral, em empregos precarizados e informais. Cerca de 31% delas já trabalham para sustentar a casa e os filhos, seja como autônomas (35,3%), empregadas domésticas ou cuidadoras (23,5%), vendedoras ambulantes (23,5%) ou trabalhadoras em serviços gerais (11,8%). “Muitas atuam em atividades ilícitas, como o tráfico de drogas e o jogo do bicho. Uma hipótese levantada antes da pesquisa era de que elas dependiam de alguém para sustentar os filhos. Na verdade, constatamos que grande parte dessas meninas é responsável por isso, engravidando pela primeira vez aos 14 anos e tendo o segundo filho aos 17 anos ou 18 anos”, comenta Cássia Souza, coordenadora de projetos do CMC e uma das responsáveis pelo levantamento.
De acordo com Souza, o levantamento teve como objetivo munir o poder público de informações relevantes para a elaboração de políticas públicas de combate à evasão escolar feminina. “O relatório foi entregue no dia 29 de março, no auditório da prefeitura, com a presença do vice-prefeito e de representantes de diversas secretarias, como a da Mulher, a de Saúde e a de Educação. Eles alegam já ter um plano de enfrentamento, que é um recorte geral de quem já está na rede e não foi à escola por causa da pandemia. A gente está apresentando uma evasão que já existia antes da covid-19, com meninas há mais de dois anos fora da rede”, enfatiza.
Coordenadora de projetos do CMC cobra políticas firmes de enfrentamento à evasão escolar no Cabo. (Júlio Gomes/LeiaJá Imagens)
A coordenadora de projetos afirma também que, antes do levantamento do CMC, o município alegou que não contava com dados sobre evasão escolar, enquanto o Governo do Estado informou que não havia evasão em sua rede. “Essas meninas são invisíveis, saíram do sistema. Há um déficit escolar, principalmente no Estado, que foi convidado a comparecer ao nosso evento, mas não apareceu. O secretário municipal de Educação se comprometeu em fazer uma comissão para buscar interlocução com o governo, que precisa garantir vagas no Ensino Médio, que é onde as meninas somem da escola”, comenta Souza.
Para a coordenadora de projetos, a reforma do Ensino Médio, a nível federal, também atrapalha as jovens mães e trabalhadoras que precisam frequentar a escola. “O ensino integral é complicado para quem precisa sustentar a casa e criar os filhos, essas meninas precisam de uma bolsa que garanta a permanência delas no sistema de ensino. As aulas noturnas também são uma possibilidade para esse público, mas ele não é seguro se a escola for longe de casa”, acrescenta.
Suplício para chegar à escola
Gabriela e Ana Paula Silva criticam distância entre escolas e o conjunto Vila Claudete. (Júlio Gomes/LeiaJá Imagens)
Enjoo, dor de cabeça e muito suor. O desgaste físico diário no caminho para a escola fez com que Gabriela Vitória da Silva, de 18 anos, desistisse de frequentar a Escola de Referência Senador Francisco Pessoa de Queiroz, na Vila Cohab. A unidade de ensino dista cerca de 8km de sua casa, localizada no Conjunto Habitacional Nova Vila Claudete, onde vivem cerca de 1121 famílias retiradas de áreas pleiteadas pelo Complexo de Suape. Privados de seus modos de vida, os moradores da área compartilham da dificuldade de conseguir novos empregos e do difícil acesso a equipamentos públicos, como postos de saúde e escolas.
“Eu estudava em horário integral, das 6h às 17h, então tinha que sair muito cedo para a escola, mas não conseguia ir todo dia, só quando tinha muita disposição. Não tem ônibus para lá, então eu fazia o caminho a pé, com mais duas colegas, sempre chegando muito cansada nas aulas, não dava para prestar atenção. Passava o dia inteiro com dor de cabeça, por causa do sol quente”, lamenta Gabriela.
De acordo com a jovem, sua comunidade não dispõe de linha de ônibus que vá até a unidade de ensino. “Dava medo de voltar de noite, ainda mais com a gente cansada da escola, andando devagar por umas duas horas. Eu tinha medo, o caminho é perigoso”, completa Gabriela.
Diante das dificuldades enfrentadas diariamente pela filha, a dona de casa Ana Paula da Silva decidiu tentar matricular a filha na Escola Estadual Madre Iva Bezerra De Araújo, no centro do Cabo. A família acredita que, embora mais distante, a unidade de ensino seja mais segura para Gabriela, em razão da existência de linhas de ônibus da Vila Claudete para a região central da cidade.
“Eu não tenho computador, nem sei ler e nem escrever. Como eu ia conseguir fazer a matrícula dela na internet? Eu preciso de alguém que faça isso comigo, frente a frente, por isso fui na escola. A mulher que me atendeu, se sentindo superior, nem se levantou do birô e me olhou de um jeito que eu conheço muito bem, porque sou preta e pobre. Ela disse ‘não vou deixar de botar os meus alunos que estão vindo de longe, nem os que estão aqui estudando para botar ela que está querendo sair de outro colégio’”, conta Ana Paula.
Segundo ela, a escola disse que daria retorno caso conseguisse encaixar a estudante em alguma de suas turmas. Ninguém nunca entrou em contato com a família. A reportagem do LeiaJá foi até a Escola Estadual Madre Iva Bezerra De Araújo, onde foi recebida pela coordenação da unidade e teve acesso a uma espécie de lista de espera escrita à mão pela própria diretora. Entre dezenas de nomes, a coordenação não localizou o de Gabriela Vitória.
Questionada pelo LeiaJá acerca do enfrentamento à evasão escolar no município, a prefeitura do Cabo de Santo Agostinho disse apenas, por meio de nota, que o programa Busca Ativa realizou o mapeamento das estudantes deixaram de frequentar as aulas em razão da falta de acesso à internet e que distribuirá absorventes para estudantes da rede municipal.
A gestão municipal disse ainda que pretende promover a: “ Instituição de um Comitê Municipal”; a “Instituição nas Escolas de um comitê local para Acompanhamento”; a “Mobilização das escolas, no sentido de acompanhar a frequência diária dos estudantes”; o “Acompanhamento sistemático através do SIGEC”; a “Identificação dos domicílios a serem visitados”; o “Planejamento das visitas domiciliares”; a “Reunião com as escolas que apresentam números significativos”; a “Reunião com os pais para apresentar o PBE”; a “Formação com os Conselhos Escolares”; a “Realização das visitas domiciliares”; o “Acompanhamento da (Re)matrícula dos estudantes; e a matrícula dos “estudantes que estão fora da escola encontrados nas comunidades”.
Também através de nota, a secretaria de Educação do Governo de Pernambuco declarou que “na cidade do Cabo de Santo Agostinho, não existe evasão em nenhuma das duas etapas de ensino” e que o estado possui uma das menores taxas de evasão escolar do Brasil, com percentual de 0,7% para o Ensino Médio e de 0,4% para o Ensino Fundamental.
Leia o posicionamento na íntegra:
"A Secretaria de Educação e Esportes de Pernambuco (SEE) possui um sistema de informação que acompanha a frequência de todos os estudantes da rede. Segundo este levantamento, a taxa de evasão escolar das unidades públicas estaduais de Pernambuco é uma das menores do Brasil. Atualmente é de 0,7% para o Ensino Médio, e 0,4% para o Ensino Fundamental. Na cidade do Cabo de Santo Agostinho, não existe evasão em nenhuma das duas etapas de ensino.
O Governo de Pernambuco garante a educação básica para todos e todas, independentemente da mesorregião. Em alguns casos, existem escolas mais concorridas, onde a procura por matrícula é alta, e ao chegar no limite de vagas preenchidas (total de alunos que a unidade de ensino comporta), a Secretaria de Educação e Esportes de Pernambuco (SEE-PE) encaminha o estudante para outra unidade de ensino mais próxima à desejada. Caso o aluno precise de transporte para se deslocar, é necessário que ele informe à gestão da instituição. A cidade do Cabo de Santo Agostinho faz parte do Programa Estadual de Transporte Escolar (PETE), criado pelo Governo de Pernambuco e que consiste em um repasse de recursos financeiros às prefeituras para que seja ofertada aos estudantes da rede estadual de ensino uma condução até às escolas.
Atualmente, a cidade do Cabo de Santo Agostinho conta com 17 escolas públicas estaduais, distribuídas em diversas regiões, e que atendem a demanda da educação de todo o município. No momento, não há previsão de inauguração ou criação de escolas na cidade.
Todas as 16 Gerências Regionais de Educação (GRE) realizam, em suas escolas, ações de busca ativa. A mais recente foi o Programa Monitoria PE de Busca Ativa, que teve como objetivo diminuir a evasão escolar através de atividades que foram desenvolvidas por um profissional indicado pelas escolas. Nele, foram realizados trabalhos específicos e exclusivos dentro e fora das escolas para resgatar os estudantes que não conseguiram voltar à sala de aula. O programa durou três meses e resgatou mais de 15 mil estudantes. Em 2022, as gerências regionais seguem realizando trabalhos de busca ativa sempre que identificados casos de alunos que não estão frequentando as aulas".