Portaria do MEC restringe número de viagens de cientistas
Medida restringe o número de participantes brasileiros em congressos nacionais e internacionais, mesmo que a despesa com a viagem não seja do governo
Uma portaria do Ministério da Educação (MEC) publicada no último dia de 2019 restringe o número de participantes brasileiros em congressos nacionais e internacionais, mesmo que a despesa com a viagem não seja do governo. Cientistas dizem que a medida não tem precedente em nenhum lugar do mundo democrático e "impõe uma limitação ao desenvolvimento da ciência". Procurada pela reportagem, a pasta não se manifestou.
Carta enviada ao ministério por duas das mais importantes entidades científicas do País, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC), pede a revogação urgente da portaria, lembrando que as reuniões científicas são cruciais para a troca de conhecimento e o estabelecimento de parcerias.
"A portaria foi feita claramente por alguém que não entende como funcionam a pesquisa e os congressos internacionais", afirmou o presidente da ABC e professor de Física da Universidade Federal do Rio (UFRJ), Luiz Davidovich.
O artigo 55 da portaria 2.227, de 31 de dezembro do ano passado, estabelece o envio de "no máximo dois representantes para eventos no país e um representante para eventos no exterior, por unidade, órgão singular ou entidade vinculada".
Caso mais pessoas queiram participar, prevê a medida, é necessário solicitar ao MEC autorização especial. E mais: o pedido só pode ser feito "em caráter excepcional e quando houver necessidade devidamente justificada, por meio de exposição de motivos dos dirigentes das unidades".
A carta assinada pelos presidentes da ABC, Luiz Davidovich, e da SBPC, Ildeu Moreira, pede ao ministro da Educação, Abraham Weintraub, que reveja a decisão. Segundo Davidovich, a carta explica "pedagogicamente" a importância dos congressos nas carreiras científicas.
"Devido ao crescimento exponencial do conhecimento científico, é comum ter, em uma mesma unidade ou grupo de pesquisa, cientistas que, embora reunidos em torno de um tema, trabalham em projetos e subáreas distintas", sustenta o documento. "Por isso mesmo, é frequente, em reuniões nacionais e internacionais, a participação de (vários) membros de uma mesma unidade ou grupo de pesquisa."
Além disso, dizem os pesquisadores, várias áreas da ciência se valem de colaborações internacionais para o desenvolvimento de pesquisas e publicações de maior impacto. "A limitação de participação de, no máximo, dois servidores em feiras, fóruns, seminários, congressos, simpósios, grupos de trabalho e outros eventos no país, e de um representante para eventos no exterior, por unidade, órgão singular ou entidade vinculada, não se adequa (sic) à realidade do papel da universidade e das instituições de ensino, pesquisa, extensão, tecnológicas e de inovação no mundo globalizado", aponta a carta.
O documento ainda destaca que congressos são importantes na formação dos jovens pesquisadores. "A restrição contribuirá para o empobrecimento da formação do jovem cientista brasileiro, fato que não ocorre em nenhum outro país que preze pela ciência e tecnologia. "Não dá para escolher um pesquisador; é um absurdo isso; falta compreensão por parte do ministério sobre como funciona a ciência", disse Davidovich.
Segundo a portaria, ainda que as despesas da viagem não sejam pagas pelo governo, a restrição será mantida. "Se não é uma medida de economia, que medida é essa?", questiona Davidovich. O MEC não respondeu ainda à demanda dos cientistas. A reportagem também procurou a pasta, mas ainda não obteve retorno.
Relação turbulenta
Desde o ano passado, a gestão Jair Bolsonaro tem vivido uma relação tensa com as universidades públicas. Em abril, o anúncio do bloqueio de verbas pelo governo federal levou professores, pesquisadores e alunos a protestarem nas ruas contra o MEC.
Nos meses seguintes, Weintraub atacou suposto viés ideológico de docentes e estudantes e disse que as universidades são "madrassas" de doutrinação, em alusão às escolas islâmicas. O ministro também afirmou que há plantações de maconha nos câmpus das instituições e que seria necessário ir atrás das "zebras gordas", em referências a professores universitários que teriam altos salários.