Alunos em condições especiais sofrem em busca de educação
Crianças autistas, com paralisia cerebral ou outras condições físicas e motoras ainda sofrem com a rejeição e falta de estrutura em escolas
“Na escola onde meu filho estudava disseram que não tinham como continuar com ele e queriam que eu pagasse uma auxiliar para Murilo* poder continuar estudando”, conta Michele Martins*, 28, mãe de Murilo, de seis anos. O garoto nasceu com meningomielocele, uma falha no fechamento do tubo neural que compromete a medula, os arcos vertebrais e o manto cutâneo.
A condição do pequeno Murilo trouxe uma série de consequências para o resto de sua vida. Por causa da coluna, ele não consegue andar e vive sobre um cadeira de rodas. O crânio da criança também foi afetado, o que o faz ter hipercefalia e hipertensão intracraniana. Sua bexiga não consegue expelir urina sozinha, então é preciso que Michele insira uma sonda de alívio a cada duas horas para que o xixi dele possa sair do corpo.
Apesar dos problemas, Murilo é um menino alegre e sua condição especial o faz ainda mais feliz. Uma vez por semana, ele tem consultas com fisioterapeuta e terapeuta ocupacional no Núcleo de Assistência Multidisciplinar ao Neurodesenvolvimento Infantil (Namni), localizado em Vitória de Santo Antão, em Pernambuco.
Lá, Murilo faz suas consultas para tentar sanar as dificuldades do dia a dia, oriundas de sua condição especial. Na outra parte do tempo, ele está na escola, também localizada na mesma cidade pernambucana. Estudante do primeiro ano do ensino fundamental, Murilo, morador da mesma cidade onde faz o tratamento e estuda, encontra dificuldades no aprendizado e manutenção dentro do ambiente escolar, segundo sua mãe. Michele afirma a dificuldade de uma escola aceitar a criança. “Na antiga, que era particular, eles não quiseram mais meu filho. Aí coloquei ele na municipal e está um grande problema. Tem dias que ele vai para não fazer nada. Um dia cheguei lá e ele estava sentado na cadeira e mandando a auxiliar escrever as letras do alfabeto no quadro”, conta.
Por lei, é garantido que, quando necessário, educandos tenham serviço de apoio especializado na escola regular “para atender as peculiaridades da clientela de educação especial”. E, segundo Michele, Murilo necessita desse acompanhamento. “Nessa nova escola ele nunca foi uma vez sequer para o chão brincar com as crianças. Na antiga, ele sempre ia, voltava feliz e ir para o colégio era uma alegria. Hoje, ele só vai a pulso”, lamenta a mãe do garoto.
E dentro de uma perspectiva de abandono familiar, estão Michele e Murilo. O pai da criança não aceita o menino. “Ele fica o tempo todo dizendo que perdeu a mulher, que eu só quero viver em hospital”, revela. A mãe ainda explica que passa por dificuldades para levar o filho à escola e a consultas médicas porque não tem como ter um carro. “A lei garante que ele, por ele ter deficiência, ele possa ter um carro em seu nome e ter desconto no valor do automóvel. Eu fui tentar conseguir e disseram que se eu fosse comprar o carro, perderia o auxílio que o INSS dá a ele. Como é que se tem um direito e depois esse direito é retirado por conta de outro direito? Aí a pessoa tem que depender de homem para ter as coisas”, queixa-se Michele.
Procurada pela equipe de reportagem do LeiaJa.com, a escola privada onde Murilo estudava não respondeu às diversas tentativas de contato. Da mesma maneira, a Prefeitura de Vitória de Santo Antão também não retornou aos e-mails e ligações da nossa equipe.
Em uma condição de incerteza também vivem Juliana Gomes, 24, e Allan Gabriel, 5. Moradores de Bonança, distrito de Moreno, Região Metropolitana do Recife (RMR), os dois enfrentam dificuldades educacionais. Allan foi diagnosticado com autismo leve aos dois anos. Até essa idade, o garoto não falava, só andava nas pontas dos pés. O processo de inseri-lo dentro da educação regular só aconteceu neste ano.
“As escolas não aceitavam por ele ser autista, diziam que não tinham suporte para ficar com ele. Ele foi para a ‘Cinco de Julho’, em Bonança, e teve muitos problemas”, explica a mãe. Allan só começou a estudar em maio, quando, segundo Juliana, uma auxiliar foi contratada para ajudar o garoto em sala de aula. Porém, ele entrou de férias antes das demais crianças porque o contrato dessa profissional foi encerrado antes mesmo do período letivo terminar. “Eu ainda fui na escola e eles disseram que eu poderia correr atrás de outro [auxiliar], mas seria o tempo que o colégio ia entrar de férias”, conta Juliana.
Segundo a Prefeitura de Moreno, todos os alunos da escola 'Cinco de Julho' ainda irão concluir seus anos letivos. “Como diretora da escola, recebo essa denúncia até com surpresa, pois temos acompanhado todos os alunos que são registrados com laudos médicos, e não deixaremos de cumprir o calendário letivo com nenhum aluno”, esclarece a diretora do colégio, Valquíria Soares. Já Juliana aponta que a resposta é uma inverdade. “Eles querem esconder a verdade para não se prejudicar. Falei com a própria auxiliar dele e ela disse que ele não precisava mais ir para a escola. Tentei por duas vezes falar com a diretora, mas ela também nunca estava lá”, conta.
Rejeitar matrículas de crianças com necessidades especiais é crime, de acordo com a Lei nº 47/2015, promulgada em abril do mesmo ano. A legislação pernambucana prevê a multa de três a 20 salários mínimos para escolas que negarem a recepção de crianças com condições especiais. Nacionalmente, a Constituição ainda reforça a obrigatoriedade da aceitação, com a Lei 9.394/1996, regulamentada em 1999.
Segundo o Censo Escolar da Educação Básica 2017, divulgado pelo Ministério da Educação (MEC), o ano contou com 827.243 matrículas de crianças com deficiência. A quantidade, segundo o MEC, vem crescendo. O índice de inclusão de pequenos com necessidades especiais inseridos nas classes regulares aumentou de 85,5% em 2013 para 90,9% em 2017. Entretanto, apenas 40,1% dos matriculados têm acesso ao atendimento especial.
Já o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) estima que uma em cada 20 crianças com 14 anos ou menos vive com algum tipo de deficiência moderada ou grave. Um levantamento da plataforma 'QEdu', com base no Censo Escolar da Educação Básica 2016, aponta que cerca de 26% das escolas públicas do país têm dependências acessíveis para crianças com deficiência. Na rede particular, o total sobe para 35%.
Educação convicta, dificuldades do dia a dia e incertezas para o futuro
Matheus, de 2 anos, autista, não teve problema em conseguir sua vaga em uma escola particular do Recife. Segundo seu pai, também autista, Carlos Nascimento, 39 anos, a escola não negou a recepção da criança, porém, não irá fornecer atendimento especial para ela. “Disseram que os custos de um auxiliar são muito caros e que se a gente quisesse, poderíamos contratar uma pessoa para acompanhar ele”, explica.
O radialista, que atualmente trabalha na área de serviços gerais em uma escola do Recife, tem medo do que seu filho poderá passar. “Eu vejo que as escolas ainda não estão preparadas para receber crianças autistas. Há a necessidade de inclusão e da capacitação de profissionais que saibam lidar com um momento de crise, por exemplo”, conta Carlos. O pai de Matheus ainda relata seus sonhos para o filho. “Matheus é nosso primeiro filho, eu gostaria que ele fosse um cantor, um ator, um artista. Minha esposa queria que ele fosse voltado para a área acadêmica, um advogado, um doutor".
Aos dez anos e com paralisia cerebral, Júlia dos Santos está desde os seis anos estudando em uma escola municipal de Vitória de Santo Antão. Sua mãe, Maria Severina dos Santos, 35, confessa que não teve dificuldades para inserir a pequena na educação. Júlia foi posta na educação especial, segundo Maria, porque não iria acompanhar os demais alunos na educação inclusiva. “Ela não tem oralidade, ela só escuta, ela está só no rabisco, então ela está na educação especial para socializar porque a aprendizagem não acontece somente no ler e escrever, acontece como um todo, na interação um com o outro”, explica.
Antes de entrar na escola pública, Júlia recebeu negativas de centros educacionais privados. “Os professores que estão aqui não têm condições de atender sua filha”, relembra Maria Severina a resposta da diretora da primeira escola que procurou para a filha. “Os colégios não podem dizer ‘não’. Se fosse hoje, eles iriam pegar uma mãe instruída; na época eu não era”, conta.
Confira abaixo o depoimento da mãe de Júlia e do pai de Matheus:
Suporte escolar
Na contramão do abandono escolar, estão Lucas, 9, autista, e Leila Costa, mãe do garoto. O pequeno ingressou no colégio ainda na educação infantil, aos dois anos, mas sem diagnóstico. “Foi a escola que percebeu alguma coisa diferente nele e me mostrou as atividades. Então, eu vi que o que ele fazia no colégio era muito distinto do que fazia em casa. A escola me recomendou procurar algum profissional”, conta Leila. A mãe de Lucas ainda salienta que iniciou a investigação pela oftalmologista. “A gente acha logo que é um problema de visão e por isso ele não estava conseguindo ler direito as coisas da escola”, lembra.
Lucas ainda passou por um psicólogo durante um ano, que não suspeitou do autismo. Em seguida, o menino ainda teve consultas com uma neurologista, momento em que houve a desconfiança do Transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH). “Foi pedido para fazer uma avaliação neuropsicológica, que faz com que o profissional tenha ideia do que é a criança. Ele fez os testes e veio, na época, com a diagnóstico de TDAH porque além de ser muito novo, não estava fazendo medicação nenhuma”, recorda Leila. Apenas após o uso da medicação, Lucas teve o diagnóstico de autismo confirmado.
Leila ainda salienta a importância da participação da escola na construção de Lucas. “A aceitação tem que começar dos pais, aceitar o tratamento com medicamentos, com terapia, porque senão não resolve. A família deve estar junto com os médicos, os terapeutas e escola; tem que funcionar em conjunto”, acrescenta Leila.
Apoio profissional
Segundo a neuropsicóloga Ingrid Carvalho, os transtornos psicológicos causam grandes problemas de atenção e desenvolvimento escolar em crianças e adolescentes. Porém, ela salienta que é preciso entender como a idade interfere no diagnóstico. “Até os seis anos, a criança apresenta um atraso global. A partir dos sete anos é que consideramos ser um transtorno”, explica.
A especialista ainda alerta para características de condições especiais, como o autismo. “No período escolar, a criança não fala com os outros amigos, é reclusa, não brinca nem compartilha brinquedos. Tem dificuldade de aprender, não tem atenção e não tem memória. Em outros casos, crianças com autismo são superdotadas e tem altas performances. Já tivemos um caso de uma criança de cinco anos saber falar duas línguas”, relembra.
A fisioterapeuta Renata Mariana atua no 'Namni' há dois anos e já tratou de crianças com diversas condições especiais. Autismo, paralisia cerebral e microcefalia foram algumas delas. Segundo a especialista, é preciso que, para um bom desenvolvimento escolar e social, os pais e responsáveis estendam o tratamento para dentro de casa. “Existem crianças com dificuldade motoras, então se a gente faz aqui um trabalho de pegar no lápis e quando chega em casa o pai não faz, o tempo de 20 minutos que ela fica aqui vai ter efeito mínimo”, explica.
De acordo com o psicopedagogo João Paulo Araújo, é preciso que as escolas encontrem meios para inserção das crianças em vida comum. “Não se deve trabalhar o isolamento delas, estimule a sociabilidade com outras crianças. Se você a isola, é o que chamamos de aceitação. A escola aceita o pequeno com sua condição especial, mas não estimula a interação”, diz. Confira no vídeo abaixo o depoimento do psicopedagogo.
Posição oficial
Segundo o diretor-executivo de Gestão Pedagógica da Secretaria de Educação do Recife, Rogério Morais, a matrícula de crianças na educação especial cresceu de 2,6 mil para 3,9 mil de 2013 a 2018. “Estamos ampliando o trabalho e a população está entendendo que é possível fazer uma ação de conscientização”, explica. Uma das grandes “cartas na manga” que o município conta é a utilização de salas de recursos multifuncionais.
Nessas salas, os alunos podem ter, no contraturno do horário de aulas regulares, um tipo de reforço daquilo que foi aprendido. “Sozinhos ou em dupla e com atendimento de professores especialistas na educação especial, os estudantes encaminhados para o serviço fazem uso de recursos como tablets, brinquedos, jogos que estimulem o desenvolvimento”, explica Morais. Atualmente, o município dispõe de 122 salas para as 309 escolas do Recife.
No dia a dia, crianças com necessidades especiais contam com o apoio de professores e agentes de apoio e desempenho da educação especial. Ao total, as crianças contam com mais de 1,5 mil educadores, divididos entre as funções de docentes e auxiliares.
Rogério ainda salienta para a importância de uma contribuição conjunta entre escolas municipais e particulares. “Se todos fizessem um mesmo tipo de trabalho, todos ganhariam e não haveria uma superlotação em algumas escolas que ganham reconhecimento". O diretor também aponta para as sanções e formas de denúncias. “É importante lembrar que recusar a matrícula de crianças especiais é crime punível de reclusão, podendo chegar até mesmo ao fechamento da escola. O principal é incentivar as famílias a denunciarem irregularidades junto ao Ministério Público, Procuradoria Geral e até mesmo na Prefeitura”, aconselha.
Até o fechamento desta matéria, não conseguimos entrevistar a gestora da Gerência de Educação Inclusiva e Direitos Humanos (GEIDH) da Secretaria de Educação de Pernambuco, Vera Braga.
*Michele e Murilo tiveram suas identidades verdadeiras preservadas por questão de segurança.