A missão de ser professor no sistema carcerário

Só em Pernambuco, existem 15 escolas instaladas nas unidades prisionais. Mais de 5 mil reeducandos são atendidos

por Camilla de Assis seg, 15/10/2018 - 09:00

Ser professor é um desafio no Brasil. Salário aquém para o desempenho exercido, trabalho excessivo e falta de valorização são pontos negativos que estão na lista da profissão de docente. Entretanto, há aqueles que carregam a vontade de mudar e de acompanhar cada estudante, assim como ajudar com as necessidades de cada um. Segundo o último Censo do Professor, divulgado pelo Ministério da Educação (MEC) em 2017, o Brasil tem 1.882.961 docentes.

Muito além de ensinar em escolas tradicionais, há professores que encaram a missão de ingressar em instituições de ensino dentro de presídios, como parte do processo de ressocialização. Pernambuco contém 23 unidades prisionais, além dos espaços socioeducativos da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Funase), localizados em dez municípios do Estado. 

Clóvis Benvindo da Silva e a Banda Liberdade

A Escola Pastor Amaro Sena é uma das unidades de ensino mantidas pela Secretaria de Educação de Pernambuco, e tem duas realidades bem distintas. A primeira é o dia a dia de sua sede, localizada na Rua Sete do bairro de Caetés 2, em Abreu e Lima. O amplo e aberto espaço é local onde estudam 692 alunos dos ensinos fundamental e médio, que têm rotinas normais de aula. A segunda realidade é a do seu anexo, dentro do Centro de Atendimento Socioeducativo (Case) Abreu e Lima, uma das unidades da Funase. Lá, os 221 socioeducandos matriculados na escola, ao finalizarem as aulas, saem das salas para suas celas, localizadas dentro de dois blocos, conhecidos como “pátio” e “quadrado”.

E é nesse ambiente onde trabalha o professor Clóvis Benvindo da Silva, de 50 anos. O docente de matemática atua no Case há um ano e quatro meses, quando decidiu mudar de vida. “Foi um desafio e a Funase me abraçou”, conta Clóvis. Oriundo da educação regular em escolas públicas estaduais, o professor percebeu que era melhor tratado dentro das dependências do Case. “Tive uma surpresa, aqui eu sou respeitado, algo que lá fora eu não era, os alunos até me mostravam que andavam com armas na outra escola onde eu dava aula”, conta Clóvis.

E foi pela mudança de realidade que o docente resolveu levar esperança aos seus estudantes. Juntamente com o agente socioeducativo Arthur Silva, Clóvis fundou a Banda Liberdade. Atualmente composta por nove alunos da unidade prisional da Escola Pastor Amaro Sena, a atividade extracurricular mudou o comportamento dos socioeducandos.

“A banda foi uma forma que eu vi de aprender respeito e de querer mudar quando chegar lá no ‘mundão’”, diz o socioeducando S.J., de 17 anos. Na unidade há quase um ano, o jovem decidiu mudar de vida. “Quando eu sair daqui, vou em busca de emprego e de terminar meus estudos, fazer uma faculdade de administração e trabalhar administrando as lojas da minha família”, conta. Clóvis, além de professor de matemática, toca baixo na Banda Liberdade e ensina música aos alunos.

Usando uniformes com a frase “Alguém acreditou em mim”, a Banda Liberdade é o xodó do professor. “Com a banda, eu vejo que é o momento em que os alunos podem desopilar, mudar a atenção, o foco, fazer diferente, mudar o comportamento”, reconhece. E é nesse momento, segundo Clóvis, em que o papel da socioeducação faz sentido. “Com a banda, a gente pode contribuir para que os alunos saiam daqui realmente mudados”, conta, esperançoso.

A banda é disputada. Clóvis aponta que faltam materiais para inserção de novos “músicos” na banda. “O que faltam são os instrumentos. Eles sempre pedem para entrar e a gente vai avaliando o comportamento, mas não precisa ter um conhecimento prévio em música; ensinamos tudo aqui”, conta. Hoje, os alunos tocam zabumba, triângulo, ganzá e pandeirola. Além disso, eles têm a oportunidade de ser os astros do vocal.

Recentemente reformada, a Escola Pastor Amaro Sena agora tem "cara de escola". Antes, o espaço funcionava nos fundos do Case. Embora sejam de grupos rivais, os socioeducandos do “quadrado” e do “pátio” faziam o mesmo percurso para chegar às dependências escolares. Apesar de ventilado, o espaço era pouco acolhedor: corredor escuro, salas escuras, ambiente de prisão.

Com o novo espaço erguido para os estudos, os alunos agora frequentam um local que lembra uma escola estadual. Oito salas com lousas e carteiras, corredor, banheiro e uma quadra de beach soccer fazem parte do anexo construído no pacote de reformas feitas dentro da unidade da Funase.

E quem aprovou a mudança foi o professor Clóvis, indicando que o novo ambiente será inspirador para as aulas e para as apresentações da banda. “Com essa reforma, os alunos tiveram um ganho de 1.000%”, brinca o docente.

Gilzete Dias da Silva e o respeito imposto por “Doutora Gil”

Com seu jeito sério, a professora Gilzete Dias da Silva dá aulas na Escola Dom Hélder Câmara, localizada no Presídio de Igarassu (PIG), Região Metropolitana do Recife. Lá, ela ensina alunos do primeiro ao nono ano do ensino fundamental, por meio da sua titulação de polivalente que recebeu ao concluir o magistério. Sem expressar muita emoção, a docente é categórica quando diz que aceitou o convite da antiga diretora da escola porque tinha uma missão no local.

“Eu vim para aqui com muita fé em Deus porque eu não sabia como era o espaço; e acredito que vim aqui para cumprir uma missão de ajudar, de colaborar, de ouvir e de respeitar acima de tudo, cada um com suas falhas - e eu com as minhas”, relembra a docente.

A seriedade de Gilzete em frente às câmeras da reportagem do LeiaJa.com não é reflexo da sua relação com os alunos em sala de aula. O dia da entrevista coincidiu com o aniversário da docente. A festa foi em sala, juntos com os estudantes do primeiro ano do ensino fundamental. Seus alunos não mediram esforços e escreveram, no quadro, mensagens de congratulações à professora. Rabiscado, também havia um desenho dela. A mesa de Gilzete virou uma mesa de festa e nela havia um grande bolo a ser repartido entre eles. Em círculo, as cadeiras foram posicionadas para abrir espaço para a homenagem.

O respeito também faz parte do dia a dia da docente. “Muito diferente de como é lá fora, o respeito aqui é imenso, isso é algo que eu vou levar para o resto da vida. Aqui eu sou doutora Gil”, diz a professora, afirmando não ter tido qualquer medo ao entrar em uma escola localizada dentro de uma unidade prisional. E assim como uma escola comum, a Escola Dom Hélder Câmara também oferece atividades realizadas em outras instituições de ensino fora de áreas prisionais. “Aqui é igual lá fora. Dia das crianças, dia dos professores, dia dos pais, dia das mães, tudo é comemorado”, explica Gilzete.

Aos 40 anos, Josué Nascimento da Silva está há pouco mais de dois anos no PIG. Lá, ele encara o colégio como um refúgio. “Aqui os estudos são tudo para mim. Lá fora, eu tive mais que trabalhar do que estudar”, conta. Com a “professora Gil”, como Gilzete é conhecida entre os alunos, a relação vai além do ensinar. “Ela trata a gente como um filho, não gosta que ninguém mexa com a gente”, revela Josué. Quando cumprir sua pena, o cortador de tecidos afirma que vai usar os conhecimentos que teve na escola para ajudar em seu trabalho.

Gestão

Segundo do diretor da Escola Dom Hélder Câmara, Wagner Cadete, os 530 alunos matriculados na unidade de ensino localizada dentro de uma presídio de segurança máxima, em Pernambuco, são ensinados por um corpo docente de 12 professores. Na última quarta-feira (10), outros sete profissionais de ensino chegaram à instituição, para compor a grade que irá atuar com os matriculados no Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem Urbano), ação que visa recuperar alunos entre 18 e 29 anos não concluintes do ensino fundamental e que saibam ler e escrever.

Para Cadete, uma das maiores dificuldades em aprimorar o nível dos alunos se dá na falta de bagagem que eles chegam à escola. “O maior desafio é ter um público que não construiu uma boa relação com a escola; é passar para eles que a vida escolar não está presa”, ressalta. As estratégias de combate à evasão, segundo o diretor, estão na conversa e acompanhamento do aluno.

Segundo a Secretaria de Educação de Pernambuco, a rede estadual de ensino conta 15 escolas prisionais, em todo Estado, do ensino fundamental ao ensino médio, na modalidade de Ensino de Jovens e Adultos (EJA). Ao todo, 5.480 estudantes são atendidos.

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